Dia das mães: uma sacanagem contra as mulheres

Querida Dandara da Cruz Vieira, estudante da UFG, Goiânia, GO

Ontem à tarde tu eu participamos de encontro entre muitas famílias, realizado numa chácara, como tradicionalmente acontece neste calendário. O objetivo era o de comemorar o “dia das mães”.

A programação incluiu almoço, roda de viola, música e, não poderia faltar, comunhão das pessoas que apreciam cerveja num bom bate papo marcado de alegrias, piadas e recordações de coisas boas da vida.

À tarde todos/as nos reunimos no salão de festas para as homenagens.

A linha transversal do evento foi o corte sublinhado pela exaltação das qualidades lindas, dedicadas, sacrificadas, exemplares e amorosas das mães com seus filhos e suas filhas. O traço maior foi o de desenhar as mães como mulheres perfeitas e sempre prontas a se desgastar no cumprimento da missão de construir filhos e filhas prontos/as e acabados/as para o mundo.

As próprias mulheres na qualidade de filhas e de mães, numa programação caracterizada por intensa participação em discursos, declamações, cantos, provérbios e muita emoção, definiram-se como absolutamente indispensáveis como genitoras e cuidadoras de seus/suas filhos/as e as mães delas como as fontes de reposição das mais eloquentes energias da vida.

As mulheres católicas acentuaram a importância de Nossa Senhora como mãe modelo a ser peremptoriamente seguido pelas mulheres-mães. As evangélicas, num claro esforço de se impor às católicas, despejando versículos bíblicos decorados, fora dos contextos e sem pesquisa, pintaram as mães como as servas mais abençoadas do Senhor, mesmo aquelas de ventres secos para a gravidez.

Tudo rolava romântico com muitas pessoas comovidas, chorando diante de mulheres tão perfeitas, sem história, sem carne nem sensualidade, flutuantes numa sociedade dividida onde reina o conflito ensandecido de classes, muito próximo de guerras cotidianas.

Olhei ao redor, no entanto, e só vi mulheres lindas, mas todas tremendamente massacradas pela exploração brutal, imoladas e estraçalhadas no altar da opressão, armado pelo capitalismo machista e discriminante.

Conheço a grande maioria das mulheres, dos seus filhos e de suas filhas e não conseguia perceber combinação no drama das homenagens com as fulminantes realidades de suas vidas, que essa sociedade oferece para suas mães e filhos/as.

Em dado momento me senti mal com uma sensação de que as homenagens sinceras nasciam de percepções enganadas, sacaneadas e mentirosas do ambiente acrítico e poluído que nos rodeia e que faz as pessoas mentirem para si mesmas. Pior, mentirem com emoção e lágrimas.

Tudo indicava que as homenagens pareciam ser divinizações e, portanto, desumanizações e desconcretizações das mães nas suas condições de mulheres pertencentes a esse mundo brutal, onde as ajudantes dos antigos sacerdotes cumpriam o ritual de sacrificar as fêmeas, arrancando delas o direito de se rebelar, de gritar, de denunciar os horrores de serem usadas para produzir filhos para o deus devorador de jovens explorados pela classe dominante e seus donos.

Meu pensamento me interpelou sobre se não é isso que fazem com todas as mulheres em  nosso País, numa sanha timbrada com o arquétipo dos cultos e ritos antigos que fizeram escravas e escravos abanarem com folhas os rostos de reis e senhores enquanto suas vítimas eram imoladas no altar como oferendas aos deuses sanguinários e impiedosos.

Meu pensamento fez um banner e jogou na minha cara com a palavra escrita em garrafais: SACANAGEM! Esse tal dia das mães é uma sacanagem capitalista que destrói a alma revolucionária e rebelde das mulheres.

Em dado momento me senti mal com uma sensação de que as homenagens sinceras nasciam de percepções enganadas, sacaneadas e mentirosas do ambiente acrítico e poluído que nos rodeia e que faz as pessoas mentirem para si mesmas. Pior, com a ilusão de santidade.

Cansado, meu mecanismo de defesa me impunha me ajeitar na cadeira para tirar  uma soneca. Assim me livraria de participar omisso do festival de enganação.

Foi aí, minha linda, inteligente, meiga, doce, mas questionadora amiga, estudante de psicologia de uma universidade pública federal, que arrancaste de mim o cansaço e arredaste a placa torturante.

Disseste, envolta em tuas roupas coloridas, sob teus cabelos imponentes de uma jovem negra que não relega sua origem nem sua consciência: “ouço que as mães são maravilhosas, doces e sempre felizes. Gente, ser mãe é difícil demais e muito doloroso. A minha mãe trabalha o dia inteiro, todos os dias. Quando acordo para ir à universidade ela ainda dorme. Quando ela acorda para trabalhar eu ainda durmo. Quase não nos vemos.”

Nesse momento me dei conta de que o movimento viveu uma ruptura e uma quebra de paradigmas. Criticaste subliminarmente a visão sacana que pintava as mulheres mães daquela forma romântica e desumana, portanto.

Ao terminar te puxei para te dar os parabéns e para acrescentar a ti a minha crítica.

Disse-te: “a partir de tua fala as homenagens mudaram o tom porque forçou as mulheres a descer para o chão da realidade. A realidade é que o capitalismo suga o Estado explorando as mulheres mães e também as famílias, esgotando todas as suas energias e recursos na “educação” de crianças e jovens para o mercado explorador e omisso. O Estado sequestrado pela burguesia se omite da missão de investir em programas de educação de nossos filhos e filhas, desde a tenra infância, construindo neles/as o modelo coletivo de cidadania e de participação com educação de qualidade e sem exploração das mulheres e famílias.” Acrescentei: “homenagens como essas aqui são reforço na acomodação para que as mulheres e famílias não se rebelem contra os exploradores. As mulheres ganham, como prêmio, os títulos de rainhas, de heroínas, de agraciadas e servas abençoadas do Senhor”.

Assim o capitalismo ganha folga e todos/as se sentem compensados como vitimas imoladas no altar da exploração.

Fui embora. Agora te escrevo.

  • Abraços críticos e fraternos na luta pela justiça e pela paz sociais.
  • Dom Orvandil, OSF: bispo cabano, farrapo e republicano, presidente da Ibrapaz, bispo da Diocese Brasil Central e professor universitário, trabalhando duro sem explorar ninguém.

 

 

 

 

 

 

 

2 comentários

  1. Amado amigo Dom Orvandil Moreira Barbosa, seu texto mais uma vez fez entrar em guerra, minhas imagens

    plásticas. Simplificarei dizendo: O mesmo “tema”, pintado por dois artistas, com tons e técnicas diferentes:

    O primeiro, com uma suave e romântica aquarela;

    O segundo, com tons complementares e agressivos, numa técnica em espátula.

    O primeiro, representa “aquelas” mães que mesmo sofrendo, abusos, de todos os tipos, com maridos,

    companheiros, filhos, durante o ano todo, no “Dia das Mães”, sentem-se a “RAINHA DO LAR”…E isto

    basta-lhes.

    O segundo, ao contrário: representa as mulheres, inteligentes. Aquelas que tiveram ou não maridos

    parceiros. Mas que pariram e assumiram as suas crias. Que transpuseram barreiras, para criar e educar os

    filhos seus. Que desgastaram-se, envelheceram, enfraqueceram e desbotaram. Mas que apesar de

    envelhecidas e enfraquecidas, choram sozinhas, escondidinhas, pra não mostrar decepção, em ver frustrado,

    todo o legado da sua Missão.

    Mães abandonadas! Mães maltratadas! Mães relegadas! Mães esquecidas!

    Filhos que esquecem que foram gerados, alimentados , tão bem cuidados e protegidos…

    Filhos ingratos! Indiferentes! vivem pra si! Sempre afastados!

    Mães envelhecem! Sempre sozinhas! Sem esquecer filhos amados!

    Um grande abraço Yolanda Soares Azambuja -Uruguaiana -RS.

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