Política

CAIO PRADO DA SILVA JUNIOR
Arisvan Nunes da Silva*.
21 anos se forma bacharel em ciências jurídicas e sociais na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Depois de formado, passa a exercer a advocacia, mas apenas por alguns anos. Lá, Faculdade que iniciou sua preparação crítica no ensaísmo político.
Em 1928, ingressou no Partido Democrático (PD), por influência de seu pai, que não tolerava o Partido Republicano Paulista (PRP), indignado com a fraude promovida pelo partido nas eleições municipais daquele ano, e atua no diretório de Santa Cecília. O Partido Democrático (PD), fundado em 1926, reunia parte da elite de São Paulo descontente com a hegemonia do Partido Republicano Paulista, um dos principais sustentáculos da “política do café-com-leite”, que predominou no Brasil nas Caio da Silva Prado Junior nasceu na cidade de São Paulo em 11 de fevereiro de 1907. Terceiro entre os quatro filhos de Caio e Antonieta Silva Prado, sua formação escolar, assim como seus irmãos, foi esmerada. Começou seus estudos em casa, orientado por professores particulares, como era comum entre as elites da época. Em 1918, ingressou no Colégio São Luís, dos jesuítas. Mudou com sua família para a Inglaterra, em 1920 onde freqüentou o Colégio Chelmsford Hall, em Eastbourn.
Já na adolescência passou a participar da política nacional. Era contrário as ideologias do Partido Republicano Paulista, que defendia os grandes proprietários de terras e cultivadores de café que dominavam o quadro político nacional.
As primeiras décadas do século XX.
Aproxima-se do marxismo porque era se decepcionara com a inconsistência política e ideológica da chamada “República Nova” e, em seguida, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1931.
Sua relação com o PCB nem sempre foi pacifica apesar do intelectual que era como ele mesmo assinalou. “Nunca pertenci à direção do Partido, nem tive nele grande prestígio ou influência. Sempre fui um elemento secundário e mal considerado, não em termos pessoais, mas por causa de minha maneira de interpretar o Brasil. Sempre fui muito marginalizado no Partido pela oposição a seus esquemas políticos e econômicos, que eu considerava falhos no que diziam respeito ao Brasil”.
A partir de 1934 a política esquerdista passa a se reorganizar devido à ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha. A idéia era criar forças que se opusessem ao regime fascista de Hitler. Resultado disso foi a criação de varias frentes populares.
Caio Prado Jr se aprofunda na atuação política nessa nova orientação antifascista. Torna-se vice-presidente da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que agrupava um variado espectro de forças sociais que se opunham ao governo Vargas, inclusive, é claro, os comunistas. Após um breve período de legalidade, a ANL foi enquadrada na Lei de Segurança Nacional, chamada de “Lei Monstro”, e fechada pelo governo em razão do apelo de “Todo Poder à ANL” feito em um manifesto divulgado em 5 de julho de 1935. O fracasso do movimento levou a uma imediata repressão política, marcadamente anticomunista, mas que atingiu uma ampla gama de opositores de Getulio Vargas, e que culminou com a aprovação do estado de sítio, sucessivamente prorrogado até junho de 1937.
Suas atividades à frente da ANL se intensificam em São Paulo, por isso Caio Prado Junior foi submetido a uma severa vigilância por parte da polícia política paulista e, após o desencadeamento da insurreição armada comunista, foi preso em dezembro de 1935, no Rio Grande do Sul, e levado a São Paulo. Ficou preso durante dois anos, acabou denunciado por crime contra a segurança nacional, mas com a suspensão do estado de sítio, em junho de 1937, requereu um habeas-corpus que lhe valeu a liberdade. Imediatamente saiu do país, indo exilar-se na França. Ali, como militante do Partido Comunista Francês (PCF), atuou em tarefas de apoio e solidariedade aos combatentes republicanos na Guerra Civil Espanhola.
Frente à iminência do desencadeamento da II Guerra Mundial, Caio Prado retornou ao Brasil em 1939, pois também fora absolvido em dezembro de 1938 das acusações que sobre ele pesavam no Tribunal de Segurança Nacional. Após seu retorno, em plena ditadura do Estado Novo, sua militância político-partidária foi muito restrita, pois o PCB fora fortemente abalado pela repressão policial do regime ditatorial varguista.
Em 1943 integra os Comitês de Ação que defendiam a luta contra o governo Vargas. Elege-se deputado estadual em 1947, tendo seu mandato cassado no ano seguinte após dez meses ativamente como parlamentar.
Em 1951 se dedica ao estudo da filosofia e publica em 1952, o livro, em dois tomos, Dialética do conhecimento. Caio Prado Jr é um intelectual orgânico da classe trabalhadora. Entre 1960 e 1962, Caio Prado Jr. viajou pelos países socialistas, URSS, China e, em Cuba, participou das comemorações do III aniversário da revolução, integrando a delegação brasileira. Em 1962, no seu retorno, publicou o livro O mundo do socialismo.
Com o golpe civil-militar de 1964, saiu o último número da revista Brasiliense (51). Caio Prado Jr. foi preso novamente e passou uma semana encarcerado no DOPS. Essa nova conjuntura brasileira e suas preocupações com a transformação da realidade encontraram em Caio Prado Jr. um esforço intelectual intenso, pois em 1966 ele lançou o clássico A revolução brasileira. Esse livro produziu um grande impacto na esquerda em nosso país e a perseguição política da ditadura avançou. Caio Prado Jr. fugiu do Brasil em 1970 para o Chile, mas foi preso ao retornar nesse mesmo ano e assim permaneceu por quase dois anos. Foi indiciado em inquérito policial-militar (IPM) e condenado. Ficou preso, primeiro na casa de detenção Tiradentes e depois no quartel de Quitaúna, quando foi solto em agosto de 1971. Neste ano mesmo tenha sido preso anida assim publicou o livro O estruturalismo de Lévi-Strauss – o marxismo de Louis Althusser.
A partir daí, começou o processo de recolhimento de Caio Prado Jr., porém continuou em articulação com as ações do partido e produzindo intelectualmente, publicando ainda, textos e livros; todavia, em 1979, ele ficou doente e passou por um período muito difícil até 1982, com o mal de Alzheimer. Continuou trabalhando muito, desenvolvendo suas reflexões intelectuais e, em 23 de novembro de 1990, morreu aos 83 anos em São Paulo. Seu corpo foi velado na biblioteca Municipal Mário de Andrade e foi sepultado no Cemitério da Consolação na capital paulista.

FONTES:
http://www.espacoacademico.com.br/070/70esp_pinto.htm Acesso em 10 de fevereiro de 2016.
http://marxismo21.org/caio-prado-jr/ Acesso em 10 de fevereiro de 2016
http://institutocaioprado.org.br/icp/ Acesso em 10 de fevereiro de 2016
*ARISVAN NUNES DA SILVA: acadêmico do curso de História, estudante do curso de jornalismo, dirigente da Ibrapaz e trabalhador.

VLADEMIR ILICH ULIÁNOV (LÊNIN)

Adelmar Santos de Araújo*

Vladmir Ilitch Uliánov (Lênin) nasceu numa pequena cidade ao centro da parte europeia da Rússia, às margens do rio Volga: cidade de Simbirsk, atual Uliánovsk. Os pais de Lênin pertenciam à intelectualidade progressista russa raznotchinaia, divisão administrativa da Rússia de 1708 até à reforma administrativa territorial de 1923-1929.
O pai de Lênin foi professor de matemática, e de física em escolas secundárias de Pezán e depois de Níjni Nóvgorod. Em 1869 ele abandona o trabalho de professor e passa a desempenhar as funções de inspetor e diretor em escolas primárias da gubérnia de Simbirsk. “I. Uliánov dispensava uma grande atenção à instrução dos povos não russos que habitavam a região do Volga. Tinha para com esses povos uma atitude de respeito e de compreensão e preocupava-se com a criação de escolas para eles” . Uma verdadeira lição acerca do caráter internacionalista e da necessidade de romper as fronteiras do conhecimento.
A mãe de Lênin, Maria Alexándrovna, era filha do médico Alexandre D. Blank, pioneiro na especialidade da fisioterapia. Por ter crescido no campo, Maria Alexándrovna recebeu apenas a educação doméstica de uma tia que substituiu a mãe. Contudo, era dona de uma capacidade extraordinária e “aprendeu vários idiomas estrangeiros e depois ensinou aos filhos” . Apesar de aspecto frágil, Maria Alexándrovna foi uma mulher abnegada, de coragem e muita força perante as adversidades. Lênin teve oito irmãos, dois deles morreram ainda bem pequenos. Os sobreviventes receberam muito amor e dedicação dos pais; tiveram educação diversificada e aprenderam a serem honrados, trabalhadores, estudiosos e sensíveis às necessidades do povo; tornaram-se revolucionários.
“Na primavera de 1887, quando Vladmir Uliánov, então com 17 anos, estava a prestar no ginásio os exames que lhe valiam o atestado de madureza, a família recebeu a notícia de que Aleksander, o irmão mais velho, estudante na Universidade de São Petersburgo (capital do Império Russo na época), fora preso e, mais tarde, executado por ter tomado parte num atentado contra o czar” .
Ninguém da família sabia das atividades revolucionárias de Alexandre Uliánov em Petersburgo e nem do seu envolvimento com a Naródnaia Vólia (A vontade do povo). Foi através do irmão mais velho que Lênin teve contato pela primeira vez com O Capital, de Marx. A execução de Alexandre Uliánov aos 21 anos de idade causou muitas comoções, inclusive no meio científico: o químico e físico Dmitri Mendeleiev teria lamentado que a Revolução lhe tivesse levado dois distintos alunos: Kibaltchitch e Uliánov.
“A morte do irmão abalou o jovem Lénine e ao mesmo tempo reforçou as suas ideias revolucionárias. Anna Uliánova-Elizávora escreveu acerca dos dois irmãos estas palavras emocionantes: ‘Alexandre Uliánov morreu como um herói, e o seu sangue, com o brilho do incêndio revolucionário, iluminou o caminho do irmão mais novo, Vladmir’”.
Lênin, inclinou-se perante a memória do irmão, a sua coragem e abnegação, sua honradez e luta perante as injustiças cometidas pelo czar e as elites russas da época, mas decidiu por um caminho diferente do irmão. O quadro de P. Beloussov, “Seguiremos outro caminho” ilustra o acontecido. “Não, não iremos por esse caminho, decidiu. Não é esse o caminho que devemos seguir” . O jovem já tinha em mente que não se faz revolução sem um partido revolucionário firme, coerente e coeso. Lênin sofreu muita repressão na escola e depois na universidade, mas conseguiu se formar em Direito. Para ele, era preciso estudar “Direito e Economia Política” .
Em A vida ensina Lênin afirma que “os que se interessam sinceramente pela sorte do movimento de libertação em nosso país, não podem, pelo menos, deixar de demonstrar interesse antes de tudo por nosso movimento operário. Tanto os anos de ascensão quanto os anos da contrarrevolução, demonstraram com meridiana clareza que a classe operária marcha à frente de todas as forças libertadoras e que, por isso, a sorte do movimento operário se entrelaça do modo mais estreito com a sorte do movimento social russo em geral.” Para tanto ele apresenta o que chamou de “curva do movimento grevista dos operários” no período de 1905 a 1911 com dados que indicariam que o movimento grevista dos operários russos foi o “maior barômetro de toda a luta popular de libertação na Rússia.”
Lênin observou que os 3 milhões de grevistas, aproximadamente, num total de 13.995 greves no ano de 1905 representaram o ponto mais alto do movimento e que, embora os dois anos seguintes tenham sofrido decréscimo com 6.114 greves totalizando 1.108.000 grevistas e 3.573 greves com 740 mil grevistas, respectivamente (em 1906 e 1907), e daí para frente o declínio tenha sido acelerado chegando em 1910 a um total de 222 greves e apenas 47 mil grevistas, o ano de 1911 alcança o total de 466 greves e conta com 105 mil grevistas, o que representa um salto qualitativo uma vez que se compreende não tratar-se mais de reformas e sim da grande reforma, ou melhor, da revolução que estava em marcha, e que de fato se consolidaria em 1917.
Assim, explica Lênin, “o ano de 1911 é um ano de reviravolta. A curva começa — embora ainda em pequena proporção — a subir. O ano de 1912 marca nova e poderosa ascensão. A curva eleva-se com segurança e decisão até o nível de 1906 e mantém evidentemente a mesma direção até o ano em que se bateu o recorde mundial com a cifra de 3 milhões de grevistas.”
Ele tinha convicção de que estava diante de uma nova época. Época em que a massa operária tinha diante de si, apesar das diferentes questões parciais, a questão geral. E acrescenta que o “renovado e poderoso movimento entusiasta das próprias massas varre, como velharia inútil, as receitas artificiais geradas nos gabinetes e prossegue em sua marcha sempre para frente.” E assim, Lênin deixava claro que compreendia “o sentido histórico do grandioso movimento que se desenvolve diante de nossos olhos.”
Evidentemente, Lênin não era um teórico de gabinete nem tampouco um agitador desavisado. Ele tinha visão e soube fazer a leitura do que de fato acontecia na Rússia; sabia sobremaneira que a organização efetiva dos trabalhadores era questão de vida ou morte. Portanto, o caminho a ser percorrido não seria outro senão por meio de um partido proletário revolucionário.
“No interesse de uma ampla e aberta luta de classes é necessário o desenvolvimento de um rigoroso espírito de partido. Por isso, o partido do proletariado consciente, a social-democracia, combate sempre com absoluta razão a ideia de se situar à margem dos partidos, esforçando-se invariavelmente para criar um Partido Operário Socialista coeso e fiel aos princípios. Esse trabalho tem êxito entre as massas à medida em que o desenvolvimento do capitalismo divide todo o povo, cada vez mais profundamente, em classes, aguçando as contradições entre elas.”
A compreensão da necessidade de um partido revolucionário consolidado e ao mesmo tempo em construção Lênin esboça pela primeira vez em 1895-1896, no Projeto de Programa do Partido Social Democrata Russo . Em seguida ele explica o programa com uma extraordinária descrição da situação que os russos enfrentavam, sobretudo as classes camponesas e operárias
OBSERVAÇÃO: TEXTO SEM REVISÃO ORTOGRÁFICA E AINDA POR FINALIZAR.
Notas
BIOGRAFIA DE LÊNIN, Edições Avante, Lisboa, 1984, p. 13. Não há menção de autoria no livro.
Ibidem.
LÊNIN, V. I. Sobre os sindicatos, Moscove: Agência de Imprensa Nóvsti, 1984, p. 5.
BIOGRAFIA DE LÊNIN, 1984, p. 18.
Sobre os sindicatos, 1984, p. 65. No quadro, a imagem firme do jovem Lênin a consolar a mãe que chora a perda do filho mais velho.
BIOGRAFIA DE LÊNIN, 1984, p. 19.
Ibidem.
LÊNIN, V. I. A vida ensina, publicado pela primeira vez no Pravda, n.° 15, de 19 de janeiro de 1913. In: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/01/19.htm. Acesso em 22/12/2015.
Idem.
Idem.
Idem.
LÊNIN, V. I. O partido socialista e o revolucionarismo sem partido. Publicado pela primeira vez em Novaia Jizn, n. 22 e 27, 26 de novembro e 2 de dezembro de 1905 In: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/12/02.htm. Acesso em 22/12/15.
Ver site https://www.marxists.org/portugues/lenin/1896/mes/projeto.htm. Acesso em 22/12/2015.
FORMAÇÃO POLÍTICA
GOIÂNIA, 23/12/2015.
*Historiador, doutor em educação, professor da rede estadual de Goiás, diretor acadêmico da Faculdade Integrada de Goiás e dirigente da Ibrapaz.

A Esquerda do futuro: uma sociologia das emergências

A máquina fatal do neoliberalismo continua a produzir medo em larga escala. As esquerdas são a areia que pode emperrar essa engrenagem.


Boaventura de Sousa Santos

Publicada por Carta Maior

wikimedia commons

O futuro da esquerda não é mais difícil de prever que qualquer outro fato social. A melhor maneira de o abordar é fazer o que designo por sociologia das emergências. Consiste esta em dar atenção especial a alguns sinais do presente por ver neles tendências ou embriões do que pode vir a ser decisivo no futuro. Neste texto, dou especial atenção a um facto que, por ser incomum, pode sinalizar algo de novo e importante. Refiro-me aos pactos entre diferentes partidos de esquerda.

Os Pactos

A família das esquerdas não tem uma forte tradição de pactos. Alguns ramos desta família têm mais tradição de pactos com a direita do que com outros ramos da família.  Dir-se-ia que as divergências internas na família das esquerdas são parte do seu código genético, tão constantes têm sido ao longo dos últimos duzentos anos. Por razões óbvias, as divergências têm sido mais extensas ou mais notórias em democracia. A polarização vai por vezes ao ponto de um ramo da família não reconhecer sequer que o outro ramo pertence à mesma família. Pelo contrário, em períodos de ditadura têm sido frequentes os entendimentos, ainda que terminem mal termina o período ditatorial.  À luz desta história, merece uma reflexão o facto de em tempos recentes termos vindo assistir a um movimento pactista entre diferentes ramos das esquerdas em países democráticos. A Europa do Sul é um bom exemplo: a unidade em volta do Syriza na Grécia, apesar de todas as vicissitudes e dificuldades; o governo liderado pelo Partido Socialista em Portugal com o apoio do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda no rescaldo das eleições de  4 de Outubro de 2015; alguns governos autonómicos em Espanha, saídos das eleições de 2015  e, no momento em que escrevo, a discussão sobre a possibilidade de um pacto a nível nacional entre o Partido Socialista, o Podemos e outros partidos de esquerda em resultado das eleições legislativas de 6 de dezembro de 2015. Há sinais de que noutros espaços da Europa e na América Latina  possam vir a surgir num futuro próximo pactos semelhantes.  Duas questões se impõem. Porquê este impulso pactista em democracia? Qual a sua sustentabilidade?
A primeira pergunta tem uma resposta plausível. No caso da Europa do Sul, a agressividade da direita no poder nos últimos cinco anos (tanto a nacional, como a que veste a pele das “instituições europeias”) foi tão devastadora para os direitos de cidadania e para a credibilidade do regime democrático que as forças de esquerda começam a ficar convencidas de que as novas ditaduras do século XXI vão surgir sob a forma de democracias de baixíssima intensidade. Serão ditaduras que se apresentam como ditamoles ou democraduras: a governabilidade possível ante a iminência do suposto caos nos tempos difíceis que vivemos, o resultado técnico dos imperativos do mercado e da crise que explica tudo sem precisar de ser, ela própria, explicada. O pacto resulta de uma leitura política de que o que está em causa é a sobrevivência de uma democracia digna do nome e de que as divergências sobre o que tal significa têm agora menos premência do que salvar o que a direita ainda não conseguiu destruir.
A segunda pergunta é mais difícil de responder. Como dizia Espinosa, as pessoas (e eu diria, também as sociedades) regem-se por duas emoções fundamentais: o medo e a esperança. O equilíbrio entre elas é complexo mas precisamos das duas para sobreviver. O medo domina quando as expectativas de futuro são negativas (“isto está mau mas o futuro pode ser pior”); por sua vez, a esperança domina quando as expectativas de futuro são positivas ou quando, pelo menos, o inconformismo com a suposta fatalidade das expectativas negativas é amplamente partilhado. Trinta anos depois do assalto global aos direitos dos trabalhadores; da promoção da desigualdade social e do egoísmo como máximas virtudes sociais; do saque sem precedentes dos recursos naturais e da expulsão de populações inteiras do seus territórios e da destruição ambiental que isso significa; do fomentar da guerra e do terrorismo para criar Estados falhados e tornar as sociedades indefesas perante a espoliação; da imposição mais ou menos negociada de tratados de livre comércio totalmente controlados pelos interesses das empresas multinacionais; da supremacia total do capital financeiro sobre o capital produtivo e sobre vida das pessoas e das comunidades – depois de tudo isto, combinado com a defesa hipócrita da democracia liberal, é plausível concluir que o neoliberalismo é uma máquina imensa de produção de expectativas negativas para que as classes populares não saibam as verdadeiras razões do seu sofrimento, se conformem com o pouco que ainda têm e sejam paralisadas pelo pavor de o perder.
O movimento pactista no interior das esquerdas é o produto de um tempo, o nosso, de predomínio absoluto do medo sobre a esperança. Significará isto que os governos saídos dos pactos serão vítimas do seu êxito? O êxito dos governos pactados à esquerda irá traduzir-se na atenuação do medo e no devolver de alguma esperança às classes populares, ao mostrar, por via de uma governação pragmática e inteligente, que o direito a ter direitos é uma conquista civilizacional irreversível. Será que, no momento em que voltar a luzir a esperança, as divergências voltarão à superfície e os pactos serão deitados para o lixo? Se tal acontecer, isso será fatal para as classes populares, que rapidamente voltarão ao silenciado desalento perante um fatalismo cruel, tão violento para as grandes maiorias quanto benévolo para as pequeníssimas minorias. Mas será também fatal para as esquerdas no seu conjunto, porque ficará demonstrado durante algumas décadas que as esquerdas são boas para remendar o passado mas não para construir o futuro. Para que tal não aconteça, dois tipos de medidas têm de ser levadas a cabo durante a vigência dos pactos. Duas medidas que não se impõem pela urgência da governação corrente e que, por isso, têm de resultar de vontade política bem determinada. Chamo às duas medidas: Constituição e hegemonia.
Constituição e Hegemonia
A Constituição é o conjunto de reformas constitucionais ou infraconstitucionais que reestruturam o sistema político e as instituições de maneira a prepará-los para possíveis embates com a ditamole e o projecto de democracia de baixíssima intensidade que ela traz consigo. Consoante os países, as reformas serão diferentes, como serão diferentes os mecanismos utilizados. Se nalguns casos é possível reformar a Constituição com base nos parlamentos, noutros será necessário convocar Assembleias Constituintes originárias, dado que os parlamentos seriam o obstáculo maior a qualquer reforma constitucional. Pode também acontecer que, num certo contexto, a “reforma” mais importante seja a defesa activa da Constituição existente mediante uma renovada pedagogia constitucional em todas as áreas de governação. Mas haverá algo comum a todas as reformas: tornar o sistema eleitoral mais representativo e mais transparente; reforçar a democracia representativa com a democracia participativa. Os mais influentes teóricos liberais da democracia representativa reconheceram (e recomendaram) a coexistência ambígua entre duas ideias (contraditórias) que garantem a estabilidade democrática: por um lado, a crença dos cidadãos na sua capacidade e competência para intervir e participar activamente na política; por outro, um exercício passivo dessa competência e dessa capacidade mediante a confiança nas elites governantes. Em tempos recentes, e como mostram os protestos que abalaram muitos países a partir de 2011, a confiança nas elites tem vindo a deteriorar-se sem que, no entanto, o sistema político (pelo seu desenho ou pela sua prática) permita aos cidadãos recuperar a sua capacidade e competência para intervir activamente na vida política. Sistemas eleitorais enviesados, partidocracia, corrupção, crises financeiras manipuladas – eis algumas das razões para a dupla crise de representação (“não nos representam”) e de participação (“não merece a pena votar, são todos iguais e nenhum cumpre o que promete”). As reformas constitucionais visarão um duplo objectivo: tornar a democracia representativa mais representativa; complementar a democracia representativa com a democracia participativa. De tais reformas resultará que a formação da agenda política e o controlo do desempenho das políticas públicas deixam de ser um monopólio dos partidos e passam a ser partilhados pelos partidos e por cidadãos independentes organizados democraticamente para o efeito.
O segundo conjunto de reformas é o que designo por hegemonia. Hegemonia é o conjunto de ideias sobre a sociedade e interpretações do mundo e da vida que, por serem altamente partilhadas, inclusivamente pelos grupos sociais que são prejudicados por elas, permitem que as elites políticas, ao apelarem para tais ideias e interpretações, governem mais por consenso do que por coerção, mesmo quando governam contra os interesses objetivos de grupos sociais maioritários. A ideia de que os pobres são pobres por culpa própria é hegemónica quando é defendida, não apenas pelos ricos, mas também pelos pobres e pelas classes populares em geral. Nesse caso são, por exemplo, menores os custos políticos das medidas que visam eliminar ou restringir drasticamente o rendimento social de inserção. A luta pela hegemonia das ideias de sociedade que sustentam o pacto entre as esquerdas é fundamental para a sobrevivência e consistência desse pacto. Essa luta trava-se na educação formal e na promoção da educação popular, nos mídia, no apoio aos mídia alternativos, na investigação científica, na transformação curricular das universidades, nas redes sociais, na actividade cultural, nas organizações e movimentos sociais, na opinião pública e na opinião publicada. Através dela, constroem-se novos sentidos e critérios de avaliação da vida social e da ação política ( a imoralidade do privilégio, da concentração da riqueza e da discriminação racial e sexual; a promoção da solidariedade, dos bens comuns e da diversidade cultural social e económica; a defesa da soberania e da coerência das alianças políticas; a proteção da natureza) que tornam mais difícil a contra-reforma dos ramos reacionários da direita, os primeiros a irromper num momento de fragilidade do pacto. Para que esta luta tenha êxito é preciso impulsionar políticas que, a olho nu, são menos urgentes e menos compensadoras. Se tal não ocorrer, a esperança não sobreviverá ao medo.
As aprendizagens globais
Se algo se pode afirmar com alguma certeza sobre as dificuldades por que estão a passar as forças progressistas na América Latina é que elas assentam no facto de os seus governos não terem enfrentado nem a questão da Constituição nem a questão da hegemonia. No caso do Brasil, este facto é particularmente dramático. Ele explica em parte que os enormes avanços sociais dos governos da era Lula sejam agora tão facilmente reduzidos a meros expedientes populistas e oportunistas, inclusivamente por parte daqueles que deles beneficiaram. Explica também que os muitos erros que cometeram ( foram muitos, a começar pela desistência da reforma política e da regulação dos mídia, e alguns erros deixam feridas abertas em grupos sociais importantes, tão diversos quanto os camponeses sem terra nem reforma agrária, os jovens negros vítimas do racismo, os povos indígenas ilegalmente expulsos dos seus territórios ancestrais, povos indígenas e quilombolas com reservas homologadas mas engavetadas, militarização das periferias das grandes cidades, populações rurais envenenadas por agrotóxicos, etc) não sejam considerados erros, passem em claro e até sejam convertidos em virtudes políticas ou, pelo menos, sejam aceites como consequências inevitáveis de uma governação realista e desenvolvimentista. As tarefas incumpridas da Constituição e da hegemonia explicam ainda que a condenação da tentação capitalista por parte dos governos de esquerda se centre na corrupção e, portanto, na imoralidade e na ilegalidade do capitalismo e não na injustiça sistemática de um sistema de dominação que se pode realizar em perfeito cumprimento da legalidade e da moralidade capitalistas.
A análise das consequências da não resolução das questões da Constituição e da hegemonia é relevante para prever e prevenir o que se pode passar nas próximas décadas, não só na América Latina, como também na Europa e noutras regiões do mundo. Entre as esquerdas latino-americanas e da Europa do Sul tem havido nos últimos vinte anos canais de comunicação importantes que estão ainda por analisar em todas as suas dimensões. Desde o inicio do orçamento participativo em Porto Alegre (1989), várias organizações de esquerda na Europa, Canadá e India (são estas as de que tenho conhecimento) começaram a dar muita atenção às inovações políticas que emergiam no campo das esquerdas em vários países da América Latina. A partir do final da década de 1990, com a intensificação das lutas sociais, a subida ao poder de governos progressistas e as lutas por Assembleias Constituintes, sobretudo no Equador e na Bolívia, tornou-se claro que uma profunda renovação da esquerda estava em curso e da qual havia muito que aprender. Os traços principais dessa renovação eram os seguintes: a democracia participativa articulada com a democracia representativa, uma articulação de que ambas saiam fortalecidas; o intenso protagonismo de movimentos sociais de que o Forum Social Mundial de 2001 foi uma mostra eloquente; uma nova relação entre partidos e movimentos sociais; a entrada saliente na vida política de grupos sociais até então considerados residuais, nomeadamente camponeses sem terra, povos indígenas e povos afro-descendentes; a celebração da diversidade cultural, o reconhecimento do carácter plurinacional dos países e o propósito de enfrentar as insidiosas heranças coloniais sempre presentes. Este elenco é suficiente para evidenciar o quanto as duas lutas a que me tenho estado a referir (a Constituição e a hegemonia) estavam presentes neste vasto movimento que parecia refundar para sempre o pensamento e a prática de esquerda, não só na América Latina, como em todo o mundo.
A crise financeira e política, sobretudo a partir de 2011, e o movimento dos indignados foram os detonadores de novas emergências políticas de esquerda na Europa do Sul em que as lições da América Latina estavam bem presentes, sobretudo a nova relação partido-movimento, a nova articulação entre democracia representativa e democracia participativa, a reforma constitucional e, no caso da Espanha, a questão da plurinacionalidade. O partido espanhol Podemos representa melhor do que qualquer outro esta aprendizagem, ainda que os seus dirigentes tenham estado desde a primeira hora bem conscientes das diferenças substanciais entre o contexto político e geopolítico europeu e o latino-americano.
O modo como essas aprendizagens se vão plasmar no novo ciclo político que está a emergir na Europa do Sul é, por agora, uma incógnita. mas desde já é possível especular o seguinte. Se é verdade que as esquerdas europeias aprenderam com as muitas inovações das esquerdas latino-americanas, não é menos verdade (e trágico) que estas se “esqueceram” das suas próprias inovações e que, de uma ou de outra forma, caíram nas armadilhas da velha política onde as forças de direita facilmente mostram a sua superioridade  dada a longa experiência histórica acumulada.
Se as linhas de comunicação se mantêm nos dias de hoje, e sempre salvaguardando a diferenças dos contextos,  talvez seja  tempo de as esquerdas latino-americanas aprenderem com as inovações que estão a emergir entre as esquerdas da Europa do Sul. Entre elas saliento as seguintes: manter viva a democracia participativa dentro dos próprios partidos de esquerda como condição prévia à sua adoção no sistema politico nacional em articulação com a democracia representativa; pactos entre forças de esquerda (não necessariamente apenas partidos) e nunca com forças de direita; pactos pragmáticos não clientelistas (não se discutem pessoas ou postos de governo mas políticas e medidas de governação), nem de rendição (articulando linhas  vermelhas que não podem ser ultrapassadas com a noção de prioridades, ou, como se dizia dantes, distinguindo as lutas primárias das secundárias); insistência na reforma constitucional para blindar os direitos sociais e tornar o sistema político mais transparente, mais próximo e mais dependente de decisões cidadãs sem ter de esperar por eleições de quatro em quatro anos (reforço do referendum); e, no caso espanhol, tratar democraticamente a questão da plurinacionalidade.
A máquina fatal do neoliberalismo continua a produzir medo em larga escala e, sempre que falta matéria prima, ceifa a esperança que pode encontrar nos recessos mais recônditos da vida política, social das classes populares, tritura-a, processa-a e transforma-a em medo do medo.  As esquerdas  são a areia que pode emperrar essa engrenagem majestática de modo a abrir as brechas por onde a sociologia das emergências fará o seu trabalho de formular e amplificar as tendências, os “ainda não”, que apontam para  um futuro digno para as grandes maiorias.  Para isso, é preciso que as esquerdas saibam ter medo sem  ter medo do medo. Saibam furtar rebentos de esperança à trituração neoliberal e plantá-los em terrenos férteis onde cada vez mais cidadãos sintam que podem viver bem,  protegidos, tanto do inferno do caos iminente, como do paraíso das sirenes do consumo obsessivo.  Para que isto aconteça, a condição mínima é que as esquerdas permaneçam firmes nas duas lutas fundamentais, a Constituição e a hegemonia.

Créditos da foto: wikimedia commons


Sobre a ideologia
Flávio Sposto Pompêo (UnB)

Publicado no site Consciência.org

A escolha da ideologia para este debate coloca grandes dificuldades, já que poucas categorias têm trajetórias tão conturbadas quanto esta. Se o envolvimento em polêmicos debates teóricos fosse sinônimo de grande capacidade explicativa, o conceito de ideologia seria fundamental para a compreensão da sociedade.
A palavra ideologia foi literalmente inventada pelo francês Destutt de Tracy, no final do século XVIII. Tipicamente iluminista e positivista, de Tracy pretendia criar uma nova ciência, neutra e universal, que desse conta das idéias e sensações humanas. A essa ciência, chamou ideologia. Seria a mãe de todas as ciências: todos os outros estudos humanos seriam ramificações dela.
Foi com Napoleão, porém, que o conceito de ideologia começou a envolver nas polêmicas que perduram até hoje. Napoleão passou a criticar a ideologia como ciência vã e especulativa, e mais tarde, quando a situação política piorou, passou a classificar todos os fenômenos contrários ao governo como ideologia. A verdade é que Napoleão fez da crítica da ideologia e dos ideólogos (os associados de de Tracy) uma arma política. Logo, todos os problemas da França passaram a ser culpa da ideologia. Napoleão chegou inclusive a debitar na conta da ideologia a perda de uma guerra3.
A concepção crítica da ideologia, em que tal conceito é usado como arma, foi alçada a novos patamares por Karl . Segundo Terry Eagleton (1997, p. 71), “a teoria da ideologia de Karl é provavelmente mais bem entendida como parte de sua teoria da alienação”4.
A maior parte das concepções de Marx sobre o conceito de ideologia estão explícitas na obra “A ideologia alemã”. Para entender tal livro, é necessário entender o contexto em que surgiu e suas intenções políticas. Apesar de “invertê-la”, Marx foi inegavelmente influenciado pela filosofia alemã, principalmente com a obra hegeliana e com os debatedores de tal obra, com os quais ele dialogou durante boa parte de sua vida. Neste sentido, a obra A Alemã é uma resposta a este legado filosófico. Marx, um materialista histórico, queria detonar seus precursores idealistas. Assim, fez este trabalho sobre os “ideólogos” da filosofia alemã, delimitando, já no prefácio, o que é ideologia, da qual seus filósofos antagonistas padeciam: “até o presente os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos. […] Os produtos de sua cabeça acabaram por se impor à sua própria cabeça” (Marx, 1979[1847], p. 17). Ou seja, desde este início, já é possível notar a idéia que fundamenta a ideologia como uma espécie de alienação: as idéias e representações, produtos das condições materiais em que os homens vivem, reificam-se e impõem-se aos homens como idéias externas e com vida própria. Em outro trecho, aplicado tanto aos jovens quanto aos velhos hegelianos, a crítica de Marx se fundamenta na medida em que todos estes fazem com que seus os produtos de suas consciências se tornem entidades autônomas e independentes (idem, p. 25). Estas consciências se concretizam por meio de fraseologias, e os filósofos que tentam combater estas fraseologias nada mais fazem do que impor outras fraseologias, “não combatem de forma alguma o mundo real existente” (idem, p. 26).
Neste ponto, faz-se necessário apresentar uma representação proposta por Marx para entender o mundo, fundamentada na distinção entre base e super-estrutura.A formulação de tal idéia aparece de maneira clara no famoso prefácio da “Contribuição à critica da economia política” (Marx, 2003[1859]). Segundo esta idéia, a base estaria mais ligada ao plano material, ao econômico etc, englobando, na expressão de Marx, as forças produtivas. A super-estrutura, que engloba as relações sociais de produção, seria um produto ou uma conseqüência, em algum grau, da disposição da base. É neste plano que se situariam as condições jurídicas, morais, éticas, políticas, artísticas etc de um dado modo de produção. Este raciocínio é profícuo para a compreensão da ideologia em Marx na medida em que a ideologia é vista como parte do terreno da super-estrutura, ou seja, as ideologias, que são falsas representações do mundo, são decorrências de contradições fundamentadas nas condições materiais da sociedade. A ideologia começa a surgir com a divisão do trabalho social, que traça distinção entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. Nas palavras de Marx, “a produção de idéias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real” (Marx, 1979, p. 36). Ou, em outras palavras, “se, em toda a ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo de vida” (idem, p. 37, ênfase minha). Em outra formulação, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (idem, p. 37).
Uma das manifestações ideológicas mais relevantes se dá com relação aos interesses. Os indivíduos têm como interesses mais imediatos e mais relevantes os particulares ou referentes a si próprios. Por características do modo de produção, os interesses particulares não coincidem com os interesses comuns, e as pessoas, desprezando estes, agem de maneira egoísta. Para Marx, “este interesse comum faz-se valer como um interesse “estranho” aos indivíduos, “independente” deles, como um interesse “geral” especial e peculiar” (idem, p. 49). No caso, todas as classes sociais, tal como definidas em Marx em outras obras, teriam interesses objetivos, definidos historicamente. O próprio conceito de consciência de classe representa a confluência entre os interesses objetivos (de classe) e os interesses particulares. O problema é que as ideologias servem para “nublar” o processo, de inúmeras formas, na medida em que as pessoas não percebem seus interesses objetivos, nem os interesses comuns de classe.
Neste sentido, a dificuldade de confluência dos interesses se dá por causa de uma particularidade “cruel” da lógica das estruturas da consciência: “as idéias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual” (idem, p. 72). Em outras palavras, as idéias dominantes são a expressão da dominação material. O fato de a classe dominante dispor dos dispositivos culturais é parte do mecanismo de dominação, tanto material como ideológica.
Vimos, portanto, que segundo a concepção marxiana exposta no livro A ideologia alemã, o termo ideologia assume uma acepção negativa. A tradição marxista, porém, foi rápida em mudar esta concepção. Poucas décadas depois, Lênin já falava em ideologia socialista, algo que, para Marx, talvez fosse inconcebível.
Outro autor marxista importante que fez a recuperação do conceito de ideologia foi o húngaro Georg Lukács. Pode-se dizer que História e Consciência de Classe, a principal obra de Lukács, foi fortemente influenciada pelo trabalho de Hegel e do jovem Marx5. Sobre esta influência, um dos argumentos correntes é que Lukács, que convivia com o marxismo economicista e determinista da II Internacional, perspectiva predominante em sua época, resolveu recuperar, em Hegel e no jovem Marx, elementos para a reflexão e ação que fossem divergentes da visão determinista então corrente, que gerava passividade.
Como Lênin, Lukács adotou uma concepção de ideologia que pode ser dita “neutra”. Terry Eagleton ressalta que Lukács manteve as duas concepções possíveis de ideologia: a concepção neutra, que considera a ideologia a expressão da consciência ligada à posição de classe (neste sentido, a ideologia revolucionária do proletariado seria o socialismo) e condicionada pelas condições históricas, e a concepção crítica, que deriva da idéia de fetichismo da mercadoria. Desta maneira, a consciência de classe seria a interpretação de mundo mais razoável e racional disponível para uma classe particular6.
Segundo esta concepção, a burguesia, por causa de sua posição estrutural, estaria limitada por barreiras que fazem com que sua ideologia seja limitada pelo fenômeno da reificação, derivado da forma-mercadoria que contamina todos os aspectos da vida social, assim fragmentando a compreensão social e impossibilita a apreensão real dos fenômenos sociais. Uma das contradições da consciência de classe burguesa é apontada por Löwy (1994, p. 129): por um lado, a burguesia tem um interesse grande e importante em conhecer diversos mecanismos sociais ligados a fenômenos econômicos; por outro lado, precisaria ocultar de outras classes e de si mesma a essência verdadeira da sociedade, particularmente as questões relacionadas à apropriação do trabalho e de valor. Em outras palavras,
A burguesia, […] como a classe que domina a sociedade quando pela primeira vez a economia penetrou na totalidade da sociedade, deve inevitavelmente tentar compreender a sociedade em que vive. Contudo, a tragédia da burguesia é que sua supremacia vem acompanhada pelo desenvolvimento de um desafio a esta supremacia, a partir de sua própria incipiência, na forma do proletariado. (McDonough, 1973, p. 51)
O proletariado, por outro lado, ainda que limitado pelas condições históricas específicas, carregaria em sua auto-reflexão a noção de totalidade, na medida em que sua emancipação representaria a emancipação potencial de toda a humanidade. Uma posição, portanto, a partir da qual a reflexão e a ação podem ser desenvolvidas de maneira privilegiada. Conforme aponta McDonough, “devido ao fato de que o proletariado é a classe mais totalmente alienada da sociedade, ele deve abolir a si mesmo para conseguir sua própria libertação e, assim fazendo, necessariamente liberta o resto da humanidade. Para compreender a si mesmo, ele também deve compreender a totalidade da sociedade” (1973, p. 53)7.
Eagleton defende que a posição lukacsiana é “prejudicada por uma superestimação tipicamente idealista da própria consciência” (Eagleton, 1997, p. 97). Esta perspectiva pode ser contestada, mas o que aqui é relevante são os inegáveis avanços colocados pela perspectiva lukacsiana, particularmente ao ir bem além da discussão sobre a falsa consciência e sobre os mecanismos de distorção da compreensão da realidade. Desta maneira, a ideologia seria o pensamento social estruturalmente coagido, ou seja,
A ideologia burguesa é falsa não tanto porque distorce, inverte ou nega o mundo material, mas porque é incapaz de ir além de certos limites estruturais da sociedade burguesa como tal. […] A falsa consciência, assim, é uma espécie de pensamento que se vê frustrado e impedido por certas barreiras, antes na sociedade que na mente, e que, portanto, apenas pela transformação da própria sociedade poderia ser dissolvido. (Eagleton, p. 98-99).
Outro autor marxista que teve impacto decisivo na compreensão das relações implicadas na metáfora base e superestrutura foi o italiano Antônio Gramsci. Seguindo uma idéia que já aparece em Lênin ou mesmo em Lukács, Gramsci reafirma a chamada autonomia relativa da política dentro da tradição marxista. Estabelece, a partir de sua reflexão, uma teoria ampliada do estado, em que este engloba tanto o estado no sentido restrito (a sociedade política) quanto o que Gramsci denomina sociedade civil, que seriam os órgãos que disseminam determinadas “visões de mundo”. Stuart Hall et alii8 apresentam uma concepção bem ampla da perspectiva gramsciana sobre a sociedade civil:
Uma maneira prática de se compreender sociedade civil é vê-la como um conceito que designa a esfera intermediária que inclui aspectos da estrutura e da superestrutura. É a área do “conjunto de organismos comumente chamados privados”; daí o conceito incluir não apenas associações e organizações como os partidos políticos e a imprensa, mas também a família, que combina funções ideológicas e econômicas. Portanto, a sociedade civil, nas palavras de Gramsci, “situa-se entre a estrutura econômica e o Estado”. É a esfera dos interesses privados em geral.9
Segundo esta perspectiva, a luta pelo poder se daria dentro do próprio estado, sendo que, em seu esquema explicativo, Gramsci apresenta uma categoria que se tornaria fundamental: a “hegemonia”. Sabe-se que, em diferentes momentos de sua obra, Gramsci atribuiu dois significados diferentes à hegemonia: o primeiro, mais freqüente, define a hegemonia como “a maneira com que um poder governante conquista o consentimento dos subjugados a seu domínio” (Eagleton, 1997, p. 105); o segundo, menos freqüente, inclui na hegemonia “o consentimento e a coerção” (idem, idem).
Logo podemos perceber que a grande contribuição da proposta gramsciana se situa na possibilidade de compreensão dos mecanismos “ideológicos”, ou os órgãos, mecanismos e processos da sociedade civil cujo funcionamento forma uma determinada a hegemonia; e, como conseqüência, surge a possibilidade de se pensar nas ações, medidas ou práticas que podem ser tomadas para que um grupo se contraponha a tal hegemonia. Quanto aos órgãos da cidade civil, a contribuição de Gramsci foi muito fértil no campo dos estudos pedagógicos, dos estudos relacionados às artes e dos meios de comunicação10 .
Esta proposta, apesar de sua enorme influência, não é isenta de críticas. Gramsci desperta amor e ódio nos que o lêem. Terry Eagleton, por exemplo, diferentemente do que faz com outras propostas teóricas, resolve, logo no primeiro parágrafo em que fala de Gramsci, desqualificar a obra de tal autor. Eagleton invoca Perry Anderson para afirmar que Gramsci “erra ao localizar a fonte da hegemonia apenas na sociedade civil” (idem, p. 105). Quem se equivoca aqui é Eagleton, que tenta desqualificar Gramsci sem ao menos apresentar uma definição de “sociedade civil” a partir da obra gramsciana ou mostrar os diferentes significados que tal categoria assume em tal obra. Na página seguinte, e ignorando completamente as dificuldades que Gramsci enfrentou durante a vida11 , Eagleton reafirma que a obra de Gramsci possui “incoerências notáveis”. Obviamente, as dificuldades enfrentadas na vida pessoal de um autor não eliminam as incoerências, descontinuidades ou contradições de sua obra, mas, para alguém que se propõe a apresentar um debate sistemático sobre a história do conceito de ideologia, apresentar a obra de Gramsci sem contextualizá-la adequadamente é um erro notável.
Outro autor que, seguindo a mesma tradição, retoma o conceito de ideologia, apresentando novos elementos, é o marxista estruturalista francês Louis Althusser. McLennan et ali (1973, p. 101-137) identificam 3 momentos principais na obra de Althusser:
O primeiro momento é a obra A Favor de Marx (idem, p. 108-111). O primeiro elemento relevante que a obra apresenta é a própria definição de ideologia, que remeteria ao tecido que permeia toda a vida social (uma formulação que permanece o ensaio sobre os AIE). A superestrutura ideológica aparece como sendo um dos três níveis de formação social, junto com a superestrutura política e a base econômica. Esta formulação é importante, na medida em que retoma a discussão sobre determinação (segundo a perspectiva determinista, uma das vertentes clássicas da tradição marxista, a superestrutura seria mero “reflexo” da base, que determinaria o curso dos acontecimentos). Segundo o argumento althusseriano, os níveis teriam sua independência própria, ou seja, uma transformação em um determinado nível de fato gera, dialeticamente, respostas (transformações) nos outros níveis. O fato de que, na metáfora base-estrutura, a base gera a determinação em última instância, não impede a autonomia relativa dos outros níveis. Segundo este argumento, seria possível constar que “existe uma relação necessária entre ideologia e transformações históricas” (idem,       110). Outra questão relevante neste momento da obra de Althusser é a relação entre a realidade e a ideologia. Neste momento, aparece pela primeira vez o argumento de que “relações ideológicas ocultam, ou representam mal, relações reais, embora ao mesmo tempo designem uma relação vivida e portanto real” (idem, p. 111). É um argumento que vai ser retomado mais à frente no texto.
O segundo momento seria referente à obra “Ler o Capital” (idem, p. 112-118). Neste livro, os argumentos pertinentes seriam relacionados à oposição entre ciência e ideologia. Na obra de Althusser, uma “distinção rigorosa entre “ciência” e “ideologia” (Eagleton, 1997, p. 125). Segundo esta perspectiva, a ciência se referiria ao plano da reflexão teórica, enquanto a ideologia remeteria à esfera das relações vividas.
O terceiro momento da obra seria justamente o clássico ensaio Aparelhos ideológicos de estado. Nele, Althusser apresenta duas teses fundamentais para a compreensão de sua concepção de ideologia. Tese 1: “A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (Althusser, 1985, p. 85). Tese 2: “A ideologia tem uma existência material” (idem, p. 88). Portanto, vê-se que, para Althusser, a ideologia remete à experiência do indivíduo, que, numa dada situação real, a partir de condições materiais reais, a partir de experiências e relações vividas de fato, necessariamente elabora idéias deformadas sobre o funcionamento da realidade. Assim, ideologia remeteria às “relações vivenciadas”, que obviamente não podem ser falsas, e têm sua materialidade na medida em que refletem os efeitos da posição em que o indivíduo estabelece suas relações com a realidade.
Viu-se, portanto, a dificuldade de lidar com o conceito de ideologia. Apresentamos quatro concepções principais, as de Marx, Lukács, Gramsci e Althusser, cada uma com seus respectivos elementos. A utilização do conceito, porém, não se restringe a tais concepções. Por exemplo: Terry Eagleton, em sua reflexão sistemática sobre o conceito, inicia a discussão com a apresentação de 16 concepções diferentes sobre a ideologia, segundo ele, escolhidas de forma mais ou menos aleatória (Eagleton, 1997, p. 15).
Entre as concepções apresentadas, a primeira grande dicotomia que podemos perceber é entre as concepções neutras e as críticas ou negativas do termo. As concepções críticas são aquelas que remetem ao pensamento deformado, à falsa consciência, à ilusão, à mistificação, à reificação do pensamento. “A ideologia, como o mau hálito, é, neste sentido, algo que a outra pessoa tem” (idem, p. 16).
Em seguida, para avançar na compreensão do conceito, Eagleton propõe um modelo analítico muito sério: uma hipotética conversa de bar. Se, em um bar, alguém interpelar um interlocutor denominando-o ideológico, a que ele estará se referindo? Para Eagleton, neste contexto, chamar alguém de ideológico certamente é afirmar “que se está avaliando uma determinada questão segundo uma estrutura rígida de idéias preconcebidas que distorce a compreensão” (idem, p. 17). A idéia é que o pensamento ideológico seria aquele submetido a um filtro, um sistema externo e rígido de idéias que distorceria o pensamento e a ação. Haveria duas refutações possíveis a esta concepção de ideologia. A primeira é que “não existe tal coisa como pensamento livre de pressupostos” (idem, p. 17). Necessariamente, estamos imersos em contextos sociais, a partir dos quais formulamos a nossa visão de mundo. A segunda diz que “nem todo conjunto rígido de idéias é ideológico” (idem, p. 18). O fato de eu, ao chegar ao trabalho, ter um conjunto bem rígido de idéias sobre quais botões do elevador devo apertar para chegar ao destino não necessariamente torna minhas idéias ideológicas. As mesmas idéias se tornariam ideológicas, porém, se eu pensasse que, apertando o botão correto do elevador, estaria fortalecendo minhas possibilidades de ser um bom funcionário e subir na vida pelo duro esforço e competência própria, sendo capaz de vencer na vida, ao contrário dos desempregados, preguiçosos que sequer sabem apertar botões de elevador. A partir de um raciocínio semelhante, Eagleton conclui que, para ser ideológico, não basta um conjunto rígido de idéias: é necessário que tais idéias façam referência a formas de poder ou dominação.
Porém, são possíveis dezenas de formas de referência a questões de poder. Que tipo de referência faz com que determinadas concepções sejam ideológicas? Possivelmente a resposta mais comum a esta pergunta é a que encontramos na obra de John Thompson, para quem a ideologia significa os modos pelos quais as significações sociais são usadas para manter um poder dominante (Thompson, 1995). A partir de tal perspectiva, Thompson apresenta os cinco modos principais pelos quais, em sua concepção, a ideologia operaria: a legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação (idem, p. 81-89). Obviamente, a maior limitação desta concepção é que ela automaticamente exclui todas as formas de crença ou ação que não estão ligadas a um poder dominante. Por exemplo, o feminismo e o socialismo, que tradicionalmente são associados à idéia de ideologia, estariam excluídos. Não se pode, porém, ampliar excessivamente o termo. Pois, se dissermos que tudo é ideologia, o poder de análise que o termo tem se perde completamente. Além disso, não se trata de afirmar que a concepção mais ampla ou a mais restrita estão certas. Ambas são concepções válidas, ligadas a tradições diferentes, e que podem ser úteis em diferentes contextos.
Onde reside, então, a força do termo “ideologia”? Para Eagleton, tal força está “em sua capacidade de distinguir entre as lutas de poder que são até certo ponto centrais a toda uma forma de vida social e aquelas que não o são” (Eagleton, 1997, p. 21). De fato, em diferentes disputas, o termo ideologia só tem significado quando é associado a disputas amplas que se referem a concepções sobre as formas de organização social e suas justificações.
Outro elemento significativo para o debate, e que neste trabalho tentamos identificar, é que a ideologia não é inerente à linguagem em si, e sim aos contextos em que ela é produzida. Desta forma, uma mesma frase pode ser ideológica ou não, dependendo do contexto. “A ideologia tem mais a ver com a questão de quem está falando o quê, com quem e com que finalidade do que com as propriedades lingüísticas inerentes de um pronunciamento” (idem, p. 22). É por isto que, para melhor compreender a(s) ideologia(s) sobre o mundo do trabalho associada(s), é necessário compreender os elementos relativos às transformações recentes do mundo do trabalho.
Seja qual for o ângulo que se olhe, porém, a ideologia necessariamente tem um lado real. No mínimo, é necessário dizer que a ideologia codifica desejos e necessidades reais. Se não tivesse nenhuma ligação com o mundo real, não serviria para codificar o dia a dia de milhões de pessoas. Provavelmente, seria pouco razoável afirmar que as pessoas agem de modo errático e aleatório. Portanto, mesmo que a ideologia contenha distorções ou desvios sobre o funcionamento, estes desvios codificam necessidades reais, e têm uma ligação real com o mundo, no mínimo de maneira a garantir que as práticas concretas de bilhões de pessoas e sua interação com o mundo sejam razoáveis. Além do mais, a ideologia muitas vezes codifica idéias que são absolutamente verdadeiras.
Um exemplo pertinente:
Imagine um porta voz da diretoria anunciando que “se a greve continuar, as pessoas irão morrer nas ruas por falta de ambulâncias”. Isso pode ser verdadeiro, ao contrário do que afirmar que eles irão morrer de tédio por falta de jornais; mas um operário grevista poderia, não obstante, considerar o porta­voz uma pessoa desonesta, já que o valor da observação é, provavelmente, “voltem ao trabalho”, e não há razão para supor que isso, dadas as circunstâncias, seja a coisa mais sensata a se fazer. (idem, p. 27-28)
O trecho acima exemplifica de maneira magistral um dos mecanismos da ideologia: a legitimação de interesses em uma luta. Neste caso, em seu conteúdo empírico, o enunciado ideológico não é falso; porém, ele oculta outros aspectos da realidade e legitima diferentes interesses relacionados à contenda em questão. De maneira análoga, uma reportagem poderia afirmar que a economia cresceu e tantos empregos foram gerados, o que pode até ser verdadeiro, mas que oculta os mecanismos reais da economia e outras possibilidades de organização social.
Outro argumento que retoma o argumento da falsa consciência é a idéia de que a falsa consciência pode assumir uma forma funcional. Segundo esta concepção, “falsa consciência pode significar não que um conjunto de idéias seja realmente inverídico, mas que essas idéias são funcionais para a manutenção de um poder opressivo, e que aqueles que as defendem ignoram este fato” (idem, p. 35). Obviamente, a forma epistêmica pode ocorrer ao mesmo tempo que a forma funcional.
Fizemos aqui uma breve recuperação do conceito de ideologia. Discutimos a origem do termo, as contribuições de quatro diferentes autores marxistas e, em seguida, discutimos alguns dos principais argumentos relacionados à história do conceito. Terry Eagleton termina o primeiro capítulo de seu livro afirmando que, de maneira geral, é possível definir ideologia de seis maneiras diferentes:
A primeira maneira seria entender a ideologia como “o processo material geral de produção de idéias, crenças e valores na vida social” (idem, p. 38). Esta idéia pode ser dita neutra, tanto politicamente como epistemologicamente. Assim, trata-se de uma concepção que se cala sobre elementos essenciais: nada dispõe sobre a questão dos interesses em conflito ou sobre as lutas associadas ao poder político.
A segunda maneira refere-se a “idéias e crenças (verdadeiras ou falsas) que simbolizam as condições e experiências de um grupo ou classe específico, socialmente significativo” (idem, p. 39). Neste caso, a concepção ainda é neutra e se aproxima da idéia de visão de mundo.
Já que a maneira acima exposta se cala sobre a questão dos interesses em conflito, cabe uma terceira maneira, segundo a qual a ideologia diz respeito à “promoção e legitimação dos interesses de tais grupos sociais em face de interesses opostos” (idem, p. 39).
A quarta concepção “conservaria a ênfase na promoção e legitimação de interesses setoriais, restringindo-a, porém, às atividades de um poder social dominante” (idem, p. 39). Desta maneira, a utilização do conceito seria necessariamente crítica, já que necessariamente estaria denunciando uma forma de dominação. Como esta concepção ainda é epistemologicamente neutra, a quinta maneira seria idêntica à quarta, com o acréscimo de que o ocorrido se daria pelo uso “sobretudo da distorção e dissimulação” (idem, p. 39). O sexto e último significado remeteria à falsa consciência ampla, gerada não dos interesses de um poder dominante, e sim de estruturas sociais amplas.
Na verdade, as disputas que concepções sociais ideologia só tem significado quando é associado a disputas amplas que se referem a concepções sobre as formas de organização social e suas justificações.
Estão além do escopo desta monografia as especulações sobre os processos exatos de internacionalização das ideologias e seus respectivos mecanismos internos de funcionamento na consciência humana. Parte-se do pressuposto, que serve como hipótese geral, que a ideologia dominante promove efeitos dissimuladores e mistificadores que distorcem a compreensão da realidade social das pessoas.
Notas
*A numeração das notas refere-se a publicação original da monografia. (N. do E.)
3 Para uma descrição mais detalhada deste processo, ver, por exemplo, Chaui, 2003, p.25-28; Thompson, 2002, p. 44-49; e Eagleton, 1997, p. 67-71. Para uma discussão do conceito de ideologia dentro da sociologia do conhecimento, de Destutt de Tracy a Bourdieu, ver Hall, 1983, p. 15-44.
4 Para uma descrição detalhada da teoria da alienação em Marx, ver nota de rodapé número 9.
5 Sobre as outras influências de Lukács, Cf. McDonough, 1983, especialmente p. 45-47.
6 Ver também McDonough, 1973, p. 49-50, e Löwy, 1994, p. 128)
7 Sobre a relação da ideologia com as classes burguesa e proletária, ver Eagleton, 1997, p. 90 a 100, e Löwy, 1994, p. 129-132.
8 1973. Ver especialmente as páginas 60-73. O trecho supracitado está na página 63.
9 Neste trecho específico, presumo que a referência ao Estado seja à chamada sociedade política ou estado em sentido restrito.
10 Para uma exposição sistemática e resumida dos principais conceitos de Gramsci, ver, por exemplo, Guimarães, 1998, p. 141-167. O livro em questão é uma tese de doutorado que se propõe a lutar contra tanto os argumentos liberais como os argumentos do marxismo economicista/determinista; em parte, é uma defesa da perspectiva gramsciana, a concepção praxiológica da História. Ainda sobre o conceito de ideologia em Grasmci, ver Löwy, 1994, p. 134-138.
11 Notadamente a prisão a que foi submetido durante o regime fascista italiano, na qual elaborou a maior parte de sua produção teórica.
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WALLERSTEIN, Immanuel. As agonias do liberalismo. In: E. Sader (org): O mundo depois da queda. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1995.

“Não vivemos numa democracia autêntica”, diz o jurista Fábio Konder Comparato

Postado em 07 dez 2015
por : Diário do Centro do Mundo
Publicado na Agência Pública.
Há dois meses, o jurista Fábio Konder Comparato tornou-se um dos mais proeminentes questionadores do pedido de impeachment escrito pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Conceição Paschoal. No dia 12 de outubro publicou um parecer, elaborado junto com o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, afirmando que a proposição “em termos jurídicos é literalmente absurda”, o que levou o pedido a ser reformulado.
Após a aceitação da nova proposição, Comparato concedeu essa entrevista exclusiva à Agência Pública. “Agora vocês jornalistas estão felizes, né, porque tem notícia”, disse, ao telefone. Professor aposentado da Faculdade de Direito da USP, ele reitera sua posição publicada em outubro. “Não há nenhuma base jurídica para o impeachment agora”, afirma. Convidado a comparecer a Brasília na segunda-feira (7) para demonstrar seu apoio ao governo, ele negou. “Meu parecer dado juntamente com o professor Celso Antônio não significa que nós somos advogados de defesa da presidente. Nós somos defensores da Constituição”, diz. Leia a íntegra da entrevista.
Como o senhor recebeu a notícia do acolhimento do pedido de impeachment pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha?
De certa maneira já se esperava, porque tudo isso é apenas um confronto entre políticos, no caso o presidente da Câmara e a chefe de Estado. Mas o fundamental é nós tentarmos entender que o impeachment hoje, sobretudo num país como o Brasil, é absolutamente ilegítimo. Porque o impeachment foi criado na Inglaterra e depois passou para os Estados Unidos, mas num momento em que não havia propriamente uma democracia autêntica. Quando se criou a democracia representativa, o povo ficou de lado.
Mas nos Estados Unidos houve um avanço muito grande no que diz respeito ao recall, o referendo revogatório de mandatos políticos. Afinal, quem elege o mandato não é o povo? Então por que não é o povo que pode tirar do seu encargo? Por que tem que ser o Congresso Nacional?
Aliás, eu em 2005 apresentei a dois senadores uma proposta de Emenda Constitucional instituindo o recall, não apenas para o chefe de Estado mas também para parlamentares. E houve uma tramitação no Senado até o final do ano passado, quando foi arquivada. Então na verdade nós precisamos entender que não vivemos numa democracia autêntica.
Por que não é uma democracia autêntica?
Porque, é óbvio, o povo não é soberano! O que faz o povo? No máximo ele elege pessoas ditas seus representantes, mas não toma nenhuma grande medida diretamente. A Constituição diz no artigo 14 que são manifestações da soberania popular o plebiscito, o referendo, o projeto de lei por iniciativa popular. Já no artigo 49, inciso XV, a Constituição volta atrás e diz que é da competência exclusiva do Congresso autorizar referendo e convocar plebiscito. Então o representante tem mais poder que o representado.
Existe na sua visão alguma diferença substancial entre esse pedido de impeachment e o anterior?
Não vejo. Simplesmente eles haviam pedido o impeachment com base em suposto crime, ou melhor, suposta irregularidade fiscal, que seria um crime de responsabilidade. Mas essa irregularidade fiscal ocorreu em 2014, e o mandato da presidente Dilma Rousseff expirou em 31 de dezembro de 2014, portanto eles não podiam, em 2015, em um novo mandato, para o qual ela foi novamente eleita… Eles viram esse erro grave, então alegaram que ela havia cometido outras irregularidades fiscais durante esse exercício.
Os próprios autores do pedido de impeachment reconheceram que eles tinham feito um trabalho incompleto no primeiro pedido. Mas ainda que o Tribunal de Contas da União entenda que houve irregularidades em 2015, vai ser apenas em 2016 que o Tribunal vai julgar as contas de 2015 como um conjunto. E essa decisão do Tribunal de Contas vai ser levada ao Congresso Nacional. O Tribunal é meramente um órgão auxiliar do Congresso Nacional, então é preciso que o Congresso, em 2016, tome a decisão. Na verdade ele tem que tomar duas decisões em 2016: não só se aceita o julgamento do TCU, mas a segunda a decisão, aí por 2/3 de votos, se entende que essa irregularidade configura um crime de responsabilidade. Então não há nenhuma base jurídica para o impeachment agora.
No seu parecer de outubro, você alega que mesmo “a reprovação das contas pelo Legislativo é algo que, em si mesmo e por si mesmo, em nada se confunde com crime de responsabilidade”. O que configuraria crime de responsabilidade, então?
Há outros crimes de responsabilidade que não são ligados a irregularidade fiscal. Agora, quando o pedido original do impeachment, e depois, no adendo, os autores do pedido alegam que o fundamento é a irregularidade fiscal, não pode sair desse processo. Esse processo começa no Tribunal de Contas, é concluído com o julgamento das contas pelo Legislativo, mas relativamente ao ano anterior, e se o Legislativo concordar com o Tribunal de Contas ainda tem que dar uma segunda decisão. Porque ele pode entender que apesar disso não vale a pena afastar o presidente.
Afinal, o impeachment é um processo político ou jurídico?
O processo é formalmente jurídico, mas no fundo, ele é de natureza política. Por quê? Qual é o órgão que decide em última instância a ocorrência de irregularidades jurídicas? É o Judiciário. O Legislativo não tem essa prerrogativa. Agora, quando se tem o recall, aí sim, aí não tem nada a ver com o jurídico, é como uma eleição… O povo elegeu um determinado representante, não está satisfeito com o desempenho dele, destitui esse representante.
Isso seria o ideal, para o senhor. Mas o que temos agora é o que está na Constituição…
O que existe hoje na Constituição é a possibilidade de o processo de impeachment ser utilizado como uma arma no conflito puramente político entre o presidente da República e o Congresso Nacional. É o que está acontecendo agora. Não é que eu esteja inteiramente de acordo com o governo Dilma Rousseff. Aliás devo dizer que fui convidado por um assessor da presidente para comparecer a Brasília na segunda-feira para dar todo o apoio a ela juntamente com outros juristas, e eu respondi que não, porque meu parecer dado juntamente com o professor Celso Antônio não significa que nós somos advogados de defesa da presidente. Nós somos defensores da Constituição, o que é algo muito diferente.
No centro da questão há uma lei de 1950 (1.079/50), que define os crimes de responsabilidade do presidente da República e sua forma de julgamento. Há um questionamento atualmente no STF proposto pelo PC do B porque teria lacunas nos procedimentos de julgamento. Qual a sua opinião?
Não sei, precisaria ver qual é a alegação do PC do B. Mas os pedidos foram feitos, agora compete ao Congresso Nacional prosseguir nesse processo, primeiro com um parecer da comissão do Congresso, que não é uma decisão final, é um parecer, e esse parecer é submetido à Câmara. Se a Câmara entender por 2/3 dos votos que é procedente a denúncia, então a presidente vai ser julgada pelo Senado. Vai ser no Senado que ela vai se defender.
O pedido cita também que a mesma Lei 1.079/50, que estabelece como crime de responsabilidade contra a probidade na administração “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”. E menciona nomes de membros do governo que foram investigados como Erenice Guerra, Graça Foster, Nestor Cerveró e Edinho Silva…
A improbidade administrativa tem que ser reconhecida pelo Judiciário.
Em caso de impeachment, quais serão as consequências no ordenamento jurídico? Abre-se um precedente perigoso?
Bom, é preciso lembrar que a decisão final do Congresso Nacional ainda pode ser submetida ao julgamento do Supremo Tribunal Federal. Foi o que aconteceu no caso do afastamento do presidente Fernando Collor, que entrou com mandado de segurança no Supremo e perdeu. Se o Supremo entende que o processo tem irregularidades graves, ele pode ser anulado.
A sua leitura sobre a ilegitimidade do processo também se aplica ao impeachment de Collor?
Sem dúvida. Mas de qualquer maneira, a demonstração de que o Collor não tinha mais apoio popular e que ele havia cometido crimes foi muito grande na época.
Na sua opinião essa falta de apoio não está dada no caso de Dilma Rousseff?
No Congresso Nacional não sei. Infelizmente acho que perante o povo ela não tem maioria. Mas o Congresso Nacional não quis aceitar a minha proposta de introdução do recall, que é essencialmente democrática, porque ele não quer abrir mão de poder nenhum. Eles são oligarcas, eles têm a soberania e o povo não tem. Agora eles estão vendo que a coisa não é bem assim como eles estavam pensando. Agora, de qualquer maneira é preciso entender que se se introduz o recall é preciso que ele abranja não apenas os membros do Executivo mas também parlamentares. Os parlamentares também são eleitos pelo voto, e por isso que eles não quiseram.


 

Raúl-Castro

O Presidente Cubano, Raúl Castro,  propõe convivência civilizada no hemisfério

O presidente de Cuba, Raúl Castro, em seu discurso na VII Cúpula das Américas considerou o presidente de Estados Unidos, Barack Obama, um homem honesto e se referiu a sua origem humilde. Considerou que Obama não é responsável pelo bloqueio econômico, comercial e financeiro imposto à Cuba e qualificou de valente a decisão de Obama de enfrentar o Congresso num debate sobre a eliminação dessa política.

Acrescentou que o alcance extraterritorial do bloqueio afeta os interesses de todos os Estados, pelo que não que casual o voto quase unânime nas Nações Unidas durante tantos anos seguidos e exortou a continuar com o apoio a Obama em sua intenção de eliminar o bloqueio. Valorizou como positivos os passos de Obama para tirar Cuba da lista de países patrocinadores do terrorismo, na qual – asseverou- nunca deveria ter estado, e reiterou a disposição ao diálogo respeitoso e à convivencia civilizada com Estados Unidos dentro das profundas diferenças existentes. Como Cuba foi a grande estrela do evento, em seguida publicamos quase a íntegra do discurso que abarca todos os temas em discussão no hemisfério na atualidade e fatos históricos relevantes.

Sem mais demora, eu vou começar

Em primeiro lugar, eu quero expressar nossa solidariedade com a presidente Bachelet e com o povo de Chile, pelas catástrofes naturais que têm sofrido. Agradeço a solidariedade de todos os países da América Latina e do Caribe, que permitiu a Cuba participar em igualdade neste fórum hemisférico, e ao presidente da República do Panamá pelo convite que tão amavelmente nos enviou. Eu trago um fraternal abraço ao povo panamenho e todas as demais nações aqui representadas.

Quando, em 2 e 3 de dezembro de 2011, foi criada em Caracas a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), foi inaugurada uma nova etapa na história da Nossa América, o que deixou claro seu direito bem ganho de viver em paz e a se desenvolver como livremente determinarem seus povos, e se traçou para o futuro um caminho de desenvolvimento e integração, baseado na cooperação, na solidariedade e na vontade comum de preservar a independência, a soberania e a identidade.

O ideal de Simon Bolívar de criar uma “grande Pátria Americana” inspirou verdadeiras epopeias de independência. Em 1800, pensou-se em adicionar Cuba à União do Norte, como o limite sul do vasto império. No século XIX, surgiram a doutrina do Destino Manifesto, com o fim de dominar as Américas e o mundo, bem como a ideia de Fruta Madura para a gravitação inevitável de Cuba em direção à União Americana, que desprezava o nascimento e desenvolvimento de um pensamento próprio e emancipatório. Depois, através de guerras, conquistas e intervenções, esta força expansionista e hegemônica despojou a Nossa América de vastos territórios e se estendeu até o Rio Grande.

Depois de longas lutas que foram frustradas, José Martí organizou a “guerra necessária” de 1895 — a Grande Guerra, como também foi chamada, começou em 1868 — e criou o Partido Revolucionário Cubano para liderar essa contenda e depois fundar uma República “com todos e para o bem comum”, que se propunha atingir “a dignidade plena do homem”. Ao definir com certeza e antecipação os traços de seu tempo, José Martí se consagrou ao dever “de impedir a tempo, com a independência de Cuba, que os Estados Unidos se espalhassem pelas Antilhas e caíssem com força, sobre nossas terras da América”: essas foram suas palavras exatas.

Nossa América é para ele a do crioulo, do índio, do negro e do mulato, a América mestiça e trabalhadora que tinha de fazer causa comum com os oprimidos e saqueados. Agora, mais além da geografia, este é um ideal que começa a se tornar realidade.

Intervencionismo Histórico

Há 117 anos, em 11 de abril de 1898, o então presidente do Congresso dos Estados Unidos solicitou autorização para intervir militarmente na guerra de independência que por quase 30 anos Cuba vinha travando, já ganha praticamente, ao preço de rios de sangue cubano, e aquele — o Congresso norte-americano — emitiu sua Resolução Conjunta enganosa, que reconhecia a independência da Ilha “de fato e de direito”.

Vieram como aliados e se apoderaram do país como ocupantes. Impôs-se a Cuba um apêndice em sua Constituição, a Emenda Platt — conhecida assim pelo nome do senador que a propôs — que despojou Cuba de sua soberania, autorizava o poderoso vizinho a intervir nos assuntos internos e deu origem à Base Naval de Guantánamo, que ainda usurpa parte do nosso território.

Nesse período, a invasão do norte da capital foi aumentando, e mais tarde houve duas intervenções militares e o apoio a ditaduras cruéis. Quando os cubanos, no início do século XX, fizeram seu projeto de Constituição e a apresentaram ao governador, um general norte-americano auto-nomeado pelos EUA, este respondeu que estava algo faltando. E quando os cubanos, membros da Assembleia Constituinte perguntaram, o governador respondeu: Este emenda apresentada pelo senador Platt, dando direito de intervir em Cuba, sempre sob a consideração dos Estados Unidos. Eles fizeram uso desse direito; é claro, os cubanos rejeitaram isso e a resposta foi: Muito bem, vamos ficar aqui. E isso durou até 1934. Houve mais duas intervenções militares e o apoio a ditaduras cruéis no período mencionado. Para a América Latina prevaleceu a “política das canhoneiras” e, a seguir, a do “Bom Vizinho”. Sucessivas intervenções derrubaram governos democráticos e instalaram ditaduras terríveis em 20 países, 12 delas simultaneamente.

Quem entre nós não se lembra dessa fase bastante recente de ditaduras em todos os lugares, principalmente na América do Sul, onde milhares de pessoas foram assassinadas?

O presidente Salvador Allende nos deu um exemplo imperecível. Exatamente 13 anos atrás, houve um golpe de Estado contra o entranhável presidente Hugo Chavez, que o povo derrotou. Depois veio, quase que imediatamente, o custoso golpe petroleiro. Em 1º de janeiro de 1959, 60 anos após a entrada dos soldados norte-americanos em Havana, triunfou a Revolução cubana e o Exército Rebelde, comandado pelo comandante-em-chefe Fidel Castro Ruz chegou à capital, no mesmo dia, exatamente 60 anos depois.

Tais são as ironias incompreensíveis da história. O povo cubano, a um preço muito alto, começou o pleno exercício da sua soberania. Foram seis décadas de dominação absoluta. Em 6 de abril de 1960 — apenas um ano após o triunfo — o subsecretário do Estado Lester Mallory escreveu em um perverso memorando — e não consigo achar outro adjetivo para lhe dar. Este memorando foi revelado dezenas de anos mais tarde — e cito alguns parágrafos: “(…) a maioria dos cubanos apoia Castro… Não há uma oposição política efetiva. A única opção previsível para tirar-lhe o apoio interno é através do desencanto e do descontentamento, com base na insatisfação e nas dificuldades econômicas (…), enfraquecer a vida econômica (…) e privar Cuba de dinheiro e suprimentos para reduzir os salários nominais e reais, causando a fome, o desespero e a derrubada do governo”. Em torno de 77% da população cubana nasceu sob os rigores impostos pelo bloqueio, mais terríveis do que imaginavam, inclusive, muitos cubanos, mas nossas convicções patrióticas prevaleceram, a agressão fez aumentar a resistência e acelerou o processo revolucionário.

Provocação e bloqueio

Isso acontece quando o processo revolucionário natural dos povos é assediado. O assédio traz mais revolução, a história o demonstra e não só no caso do nosso continente ou de Cuba. O bloqueio não começou quando foi assinado pelo presidente Kennedy, em 1962, acerca do qual eu farei uma breve referência a ele, por causa de uma iniciativa positiva de manter contato com o chefe da nossa Revolução, para começar o que estamos começando agora o presidente Obama e eu; quase ao mesmo tempo, veio a notícia de seu assassinato, quando sua mensagem estava sendo recebida. Quer dizer, que a agressão aumentou. No ano 1961 se produziu a invasão pela Baía dos Porcos, uma invasão mercenária, promovida e organizada pelos Estados Unidos. Seis anos de guerra contra os grupos armados que em duas ocasiões se espalharam pelo país todo. Nós não tínhamos nenhum radar e a aviação clandestina — nem se sabia de onde vinha — jogando armas em paraquedas. Esse processo nos custou milhares de vidas; os custos econômicos não temos sido capazes de avaliá-los com precisão. Foi em janeiro de 1965 quando concluiu e o tinham começado a apoiar no fim do ano 1959, cerca de 10 ou 11 meses após o triunfo da Revolução, quando ainda não tínhamos declarado o socialismo, que foi declarado em 1961, no funeral das vítimas dos bombardeios aos aeroportos, no dia antes da invasão. No dia seguinte, nosso pequeno exército, naquela época e nosso povo todo, foi combater a agressão e cumpriu a ordem do chefe da Revolução de destruí-la antes das 72 horas. Porque se a invasão se tivesse consolidado lá, no lugar do pouso, que era protegido pela maior pantanal do Caribe insular, teriam transferido para ali um governo já constituído — com primeiro-ministro e os outros ministros já nomeados — que estava em uma base militar dos EUA na Flórida. Caso eles chegarem a consolidar a posição inicialmente ocupada, teria sido muito fácil transferir esse governo para a Baía dos Porcos. E imediatamente a OEA, que já nos tinha punido, por nós termos proclamado ideias alheias ao continente, teria dado seu reconhecimento. O governo formado em Cuba, tendo como base um pedacinho de terra, teria pedido ajuda à OEA e essa ajuda estava a bordo de navios norte-americanos de guerra, a três milhas da costa, que era o limite então existente das águas territoriais, que como vocês sabem agora é de 12. E a Revolução continuou se fortalecendo, se radicalizando. A outra questão era desistir. O que teria acontecido então? O que teria acontecido em Cuba? Quantas centenas de milhares de cubanos teriam morrido; porque já tínhamos centenas de milhares de armas ligeiras; já tínhamos recebido os primeiros tanques, os quais nem sabíamos manipular bem. Quanto à artilharia, sabíamos disparar, mas não sabíamos aonde caíam os projéteis; o que alguns milicianos aprendiam de manhã, tinham que ensiná-lo aos outros na parte da tarde. Mas havia um monte de valor, era preciso avançar pela mesma rota, porque era um pantanal, onde as tropas não se podiam desdobrar, nem avançar os tanques e os veículos pesados. Nós tivemos mais baixas do que os atacantes. Assim foi cumprida a ordem dada por Fidel: dar cabo deles antes das 72 horas. E essa mesma frota americana era a que acompanhou a expedição que saiu da América Central, e estava lá, podia ser vista a partir da costa, alguns de seus navios estavam a só três milhas. Quanto custou à Guatemala a famosa invasão de 1954? Eu me lembro bem, porque era um prisioneiro na prisão da Ilha da Juventude — ou de Pinos, como era chamada então — por causa do ataque ao quartel Moncada, um ano antes. Quantas centenas e milhares de índios maias, aborígines e outros cidadãos guatemaltecos morreram ao longo de um longo processo que vai levar anos para se recuperar? Esse foi o começo. Quando tinha sido proclamado o socialismo e o povo tinha lutado para defender Praia Girón, o presidente John F. Kennedy — ao qual me referi há pouco — foi assassinado precisamente no mesmo momento, no mesmo dia em que o líder da Revolução cubana, Fidel Castro recebia uma mensagem dele — de John Kennedy — procurando iniciar o diálogo. Após a Aliança para o Progresso e de termos pago várias vezes a dívida externa, sem impedir que essa dívida se continuasse multiplicando, nos impuseram um neoliberalismo selvagem e globalizado, como expressão do imperialismo nesta época, que deixou uma década perdida na região. A ALCA “A proposta então de uma parceria hemisférica madura foi a tentativa de impor-nos a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), associada com o surgimento destas Cúpulas, que teria destruído a economia, a soberania e o destino comum de nossas nações, se não a tivéssemos feito naufragar em 2005, em Mar del Plata, sob a liderança dos presidentes Chávez, Kirchner e Lula. Um ano antes, Chávez e Fidel tinham feito nascer a Alternativa Bolivariana, hoje Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América. Excelências: Eu expressei — e o reitero agora — ao presidente Barack Obama, a nossa disposição ao diálogo respeitoso e à convivência civilizada entre os dois estados, dentro de nossas diferenças profundas. Eu aprecio como um passo positivo sua declaração recente que determinará rapidamente sobre a presença de Cuba em uma lista de países que patrocinam o terrorismo, na qual nunca Cuba devia ter estado, imposta sob a administração do presidente Reagan. Acaso nós somos um país terrorista! Sim, fizemos alguns atos de solidariedade com outros povos, que podem ser considerados terroristas, quando estávamos encurralados, cercados e assediados até o infinito, houve apenas uma escolha: a rendição ou lutar. Vocês sabem qual foi a que nós escolhemos, apoiados por nosso povo. Acaso alguém pode pensar que vamos obrigar todo um povo a fazer o sacrifício feito pelo povo cubano para sobreviver, para ajudar outras nações?. Mas “a ditadura dos Castro” os obrigou a votar pelo socialismo, com 97,5% de apoio da população. Reitero que aprecio como um passo positivo a recente declaração do presidente Obama acerca de determinar rapidamente sobre a presença de Cuba na lista de Estados patrocinadores do terrorismo, na qual nunca devia ter estado, dizia-lhes, porque quando nos impuseram essa lista, afinal os terroristas éramos os que púnhamos os mortos — não tenho em mente o dado exato — só por causa do terrorismo dentro de Cuba e em alguns casos de diplomatas cubanos em outras partes do mundo que foram assassinados. Meus colegas me deram agora o dado: nessa fase tivemos 3.478 mortos e 2.099 pessoas com deficiências para toda a vida; além de muitos outros que ficaram feridos. Os terroristas foram aqueles que puseram os mortos. De Onde vem o terror? De onde vinha o terror, então? Quem o provocava? Alguns desses que estiveram no Panamá, nestes dias, como o agente da CIA Rodriguez, que foi quem assassinou Che Guevara e levou suas mãos cortadas para testar suas impressões digitais, não sei em que lugar, que se tratava do cadáver de Che Guevara, que mais tarde nós conseguimos recuperar pela gestão de um governo amigo na Bolívia. Mas, ora bem, a partir desse momento fomos terroristas. Eu realmente peço desculpas, inclusive, até ao presidente Obama e a outras pessoas presentes nesta atividade por me expressar assim. Eu disse pessoalmente a ele que quando se trata da Revolução eu sinto uma paixão desbordada através dos poros. Peço desculpas porque o presidente Obama não tem responsabilidade com nada disso. Quantos presidentes norte-americanos já tivemos? Dez antes dele, todo mundo está em dívida conosco, a não ser o presidente Obama. Depois de dizer muitas coisas fortes a cerca de um sistema é justo pedir desculpas, porque eu estou entre aqueles que acreditam — e assim já disse a alguns chefes de Estado e de governo que vejo aqui, em reuniões privadas que tive com eles no meu país, ao recebê-los — que, na minha opinião, o presidente Obama é um homem honesto. Eu li um pouco de sua biografia nos dois livros que têm sido publicados, não totalmente, farei isso com mais calma. Admiro sua origem humilde, e eu acho que a forma que ele é se deve a essa origem humilde. Meditei muito para dizer estas palavras, inclusive as tive escritas e as apaguei; as voltei a colocar e as voltei a remover, e no fim, acabei proferindo-as; e estou satisfeito. Até hoje, o bloqueio econômico, comercial e financeiro aplica-se em pleno vigor contra a Ilha, causando danos e carências às pessoas e é o principal obstáculo para o desenvolvimento da nossa economia. Constitui uma violação do Direito Internacional e seu alcance extraterritorial afeta os interesses de todos os Estados. Não é por acaso o voto quase unânime, menos o de Israel e dos próprios Estados Unidos, na ONU durante muitos anos a fio. E, enquanto existir o bloqueio, que não é da responsabilidade do presidente, e que devido a acordos e leis posteriores se codificou com uma lei no Congresso que o presidente não pode alterar, devemos continuar lutando e apoiando o presidente Obama em suas intenções de liquidar o bloqueio. Uma questão é estabelecer relações diplomáticas e outra questão é o bloqueio. Por isso, peço a todos vocês, e também a vida nos obriga, a continuar apoiando a luta contra o bloqueio. Excelências: Nós expressamos publicamente ao presidente Obama, que também nasceu no âmbito da política de bloqueio contra Cuba, nosso reconhecimento por sua corajosa decisão de se envolver em um debate com o Congresso dos Estados Unidos para pôr fim ao bloqueio. Este e outros elementos devem ser resolvidos no processo rumo à futura normalização das relações bilaterais. Pela nossa parte, continuaremos empenhados no processo de atualização do modelo econômico cubano, a fim de aperfeiçoar nosso socialismo, avançar rumo ao desenvolvimento e consolidar as conquistas de uma Revolução que se propôs “conquistar toda a justiça” para nosso povo. O que faremos está em um programa desde o ano 2011, aprovado no Congresso do Partido. No próximo Congresso, que é no próximo ano, vamos estendê-lo, vamos analisar o que temos feito e quanto ainda temos de enfrentar o desafio. Estimados colegas: Devo advertir que vou pela metade, se quiserem acabo aqui ou continuo se estiverem interessados. Vou acelerar um pouco. A Venezuela não é nem pode ser uma ameaça para a segurança nacional de uma superpotência como os Estados Unidos. É bom que o presidente dos EUA tenha reconhecido isso. Devo reafirmar nosso apoio, de maneira resoluta e leal, à irmã República Bolivariana da Venezuela, ao governo legítimo e à aliança civil-militar liderada pelo presidente Nicolas Maduro, ao povo bolivariano e chavista que luta para seguir seu próprio caminho e enfrenta tentativas de desestabilização e sanções unilaterais que nós reclamamos sejam levantadas, que a Ordem Executiva seja revogada, embora seja difícil de acordo com a lei, o que seria apreciado por nossa Comunidade como uma contribuição para o diálogo e o entendimento hemisférico. Nós sabemos. Eu acho que posso ser dos que estamos aqui reunidos um dos poucos que melhor conhece o processo da Venezuela, não é porque nós estamos lá nem estejamos influenciando lá e eles nos digam todas as coisas a nós. Sabemos o que eles estão passando porque nós atravessamos esse mesmo caminho e eles estão sofrendo os mesmos ataques que sofremos, ou parte deles. Vamos manter nosso encorajamento aos esforços da Argentina para recuperar as Ilhas Malvinas, as Geórgias do Sul e as Sandwich do Sul, e continuar apoiando sua legítima luta em defesa da soberania financeira. Continuaremos apoiando as ações da República do Equador contra as empresas transnacionais que causam danos ecológicos a seu território e procuram impor condições injustas. Eu gostaria de agradecer a contribuição do Brasil e da presidente Dilma Rousseff, ao fortalecimento da integração regional e do desenvolvimento de políticas sociais que trouxeram progresso e benefícios para amplos setores, as quais, em meio da ofensiva contra vários governos de esquerda da região, se pretende reverter. Será invariável nosso apoio ao povo latino-americano e caribenho de Porto Rico, em seus esforços para alcançar a autodeterminação e a independência, como já declarou dezenas de vezes o Comitê de Descolonização das Nações Unidas. Continuaremos também a nossa contribuição para o processo de paz na Colômbia, até sua conclusão bem sucedida. Devemos nós todos multiplicar a ajuda ao Haiti, não apenas através de ajuda humanitária, mas também com recursos que permitam seu desenvolvimento e apoiar que os países do Caribe recebam tratamento justo e diferenciado em suas relações econômicas e reparações pelos danos causados pela escravidão e o colonialismo. Vivemos sob a ameaça de enormes arsenais nucleares que devem ser eliminados e da mudança climática que nos deixa sem tempo. Aumentam as ameaças à paz e proliferam os conflitos. Tal como expressou o presidente Fidel Castro, “as causas fundamentais são a pobreza e o subdesenvolvimento, bem como a distribuição desigual da riqueza e do conhecimento que prevalece no mundo. Não se pode esquecer que o subdesenvolvimento e a pobreza atuais são resultado da conquista, da colonização, a escravidão e o saqueio de boa parte da Terra pelas potências coloniais, o surgimento do imperialismo e as guerras sangrentas para novas partilhas do mundo. A humanidade deve tomar consciência do que fomos e do que não podemos continuar sendo. Hoje — continuou Fidel — nossa espécie adquiriu conhecimentos, valores éticos e recursos científicos suficientes para avançar em direção a uma etapa histórica da verdadeira justiça e humanismo. Nada do que existe hoje na ordem econômica e política serve os interesses da humanidade. Não se pode sustentar. É preciso mudá-lo”, concluiu Fidel. Cuba continuará defendendo as ideias pelas quais nosso povo assumiu os maiores sacrifícios e riscos e lutou ao lado dos pobres, dos doentes sem assistência médica, os desempregados, as crianças abandonadas a sua sorte ou forçadas à prostituição, os que têm fome, os discriminados, os oprimidos e os explorados que constituem a grande maioria da população mundial. A especulação financeira, os privilégios de Bretton Woods e a remoção unilateral da convertibilidade do dólar em ouro são cada vez mais sufocantes. Nós exigimos um sistema financeiro transparente e equitativo. É inaceitável que menos de uma dúzia de empórios, principalmente norte-americanos — quatro ou cinco de sete ou oito — determinem o que as pessoas podem ler, ver ou escutar no planeta. Internet deve ter uma governança internacional, democrática e participativa, especialmente na geração de conteúdos. É inaceitável a militarização do ciberespaço e o emprego encoberto e ilegal de sistemas informáticos para agredir outros Estados. Nós não nos vamos deixar deslumbrar ou colonizar novamente. Acerca da Internet, que é uma invenção fabulosa, uma das maiores nos últimos anos, bem poderíamos dizer, recordando o exemplo da linguagem nas fábulas de Esopo: que a Internet serve para o melhor e é muito útil; mas, por sua vez, também serve para o pior. Senhor Presidente: Na minha opinião, as relações hemisféricas mudaram profundamente, em particular nos domínios político, econômico e cultural; de modo que, com base no Direito Internacional e no exercício da autodeterminação e da igualdade soberana, estejam concentradas no desenvolvimento de relações mutuamente benéficas e na cooperação para servir aos interesses de todas as nossas nações e aos objetivos que as proclamam. A aprovação, em janeiro de 2014, na Segunda Cúpula da Celac, em Havana, do Proclama da América Latina e do Caribe como uma zona de paz, foi uma importante contribuição para este fim, marcado pela unidade da América Latina e do Caribe em sua diversidade. Isso se torna evidente no fato de que avançamos rumo a processos de integração genuinamente latino-americanos e caribenhos, através da Celac, Unasul, Caricom, o Mercosul, a ALBA, SICA e a Associação dos Estados do Caribe, que sublinham a crescente conscientização da necessidade de unirmo-nos para garantir nosso desenvolvimento. Este proclama nos compromete a que “as diferenças entre as nações sejam resolvidas pacificamente, através do diálogo e da negociação e outras formas de solução, e em plena conformidade com o direito internacional”. Viver em paz, cooperando uns com os outros para enfrentar os desafios e resolver os problemas que, afinal, nos afetam e afetarão a todos, hoje é um imperativo. Devem ser respeitados, como diz o Proclama da América Latina e do Caribe como Zona de Paz, assinado por todos os Chefes de Estado e de Governo da Nossa América, “o direito inalienável de todos os Estados a escolher seu sistema político, econômico, social e cultura, como condição essencial para garantir a coexistência pacífica entre as nações”. Com ele, nos comprometemos a cumprir nosso “dever de não intervir direta ou indiretamente, nos assuntos internos de qualquer outro Estado e observar os princípios da soberania nacional, a igualdade de direitos e a livre determinação dos povos” e respeitar “os princípios e normas do Direito Internacional (…) e os princípios e propósitos da Carta das Nações Unidas”. Esse documento histórico exorta “todos os Estados membros da comunidade internacional a respeitar plenamente esta declaração em suas relações com os Estados membros da Celac”. Agora temos a oportunidade para que todos os que estamos aqui aprendamos, tal como expressa o Proclama, “a praticar a tolerância e viver em paz como bons vizinhos”. Existem discrepâncias substanciais, sim, mas também pontos comuns nos quais podemos cooperar para que seja possível viver neste mundo cheio de ameaças à paz e à sobrevivência humana. O que impede que em nível hemisférico — como expressaram alguns dos presidentes que me antecederam no uso da palavra — cooperar para combater a mudança climática? Por que não podemos os países das duas Américas, a do Norte e a do Sul, lutar juntos contra o terrorismo, o tráfico de drogas ou o crime organizado, sem posições politicamente tendenciosas? Por que não procurar, em parceria, os recursos necessários para prover o hemisfério de escolas, hospitais — mesmo que não sejam de luxo, um pequeno hospital modesto, naqueles lugares onde as pessoas morrem porque não há médico — dar emprego, promover o erradicação da pobreza? Acaso não se poderia reduzir a desigualdade na distribuição da riqueza, reduzir a mortalidade infantil, eliminar a fome, erradicar as doenças evitáveis e eliminar o analfabetismo? No ano passado, nós estabelecemos a cooperação hemisférica para enfrentamento e prevenção do Ebola e países das duas Américas trabalhamos em conjunto, o que deve servir como um estímulo para maiores esforços. Cuba, país pequeno e desprovido de recursos naturais, que se tem desenvolvido em um contexto sumamente hostil, conseguiu atingir a plena participação de seus cidadãos na vida política e social da nação; uma cobertura de educação e saúde universais, de forma gratuita; um sistema de segurança social que garante que nenhum cubano fique desamparado; significativos progressos rumo à igualdade de oportunidades e no enfrentamento a toda forma de discriminação; o pleno exercício dos direitos da infância e da mulher; o acesso ao deporte e a cultura; o direito à vida e a segurança dos cidadãos. Apesar das carências e dificuldades, cumprimos o lema de compartilhar o que temos. Atualmente, 65 mil colaboradores cubanos trabalham em 89 países, sobretudo nas esferas da medicina e educação. Em nossa Ilha formaram-se 68 mil profissionais e técnicos, deles, 30 mil da saúde, de 157 países. Se com muito escassos recursos, Cuba pôde, o que é não poderia fazer o hemisfério com a vontade política de juntar esforços para contribuir com os países mais necessitados? Graças a Fidel é ao heróico povo cubano, temos vindo a esta Cúpula para cumprir o mandato de José Martí com a liberdade conquistada com nossas próprias mãos, “orgulhosos de nossa América, para servi-la e honrá-la… com a determinação e a capacidade de contribuir para que seja estimada por seus méritos, e seja respeitada por seus sacrifícios”, como disse José Martí. Senhor Presidente: Perdão, a vocês todos, pelo tempo ocupado. Muito obrigado a todos.

Fonte: Diálogos do Sul


 

Algum dia

O passado pode nos ajudar a enxergar a barbárie não como algo natural, mas como produto de escolhas políticas que podemos, algum dia, mudar.


Tarso Genro*

 Carta Maior – 28/05/2015

 Marcos Oliveira/Agência Senado

Leio nos jornais de hoje que o Exército Islâmico teria massacrado “pelo menos 400 pessoas em Palmira”, cidade síria que é reconhecida pela Unesco como patrimônio da humanidade.  Na verdade,  trata-se de mais um episódio de barbárie, que deu sequência às respostas das comunidades fundamentalistas locais, em série – desde a Guerra do Golfo e a ocupação do Iraque – aos massacres de civis e aos campos de concentração do Estado americano, na chamada “Guerra ao Terror”. A mesma guerra que promoveu até legislações de “exceção”, nos Estados Unidos da “Era Bush”, como o “Patriot Act”, que chega ao requinte de permitir e legalizar a tortura contra prisioneiros e suspeitos. O massacre de Palmira tem o mesmo sabor de barbárie e desumanidade que as intervenções das grandes potências, na busca de garantir seus interesses econômicos nos países que são alvo das suas ações militares.

Vivemos sob uma ordem internacional falida, em que as Nações Unidas, independentemente das boas intenções dos seus dirigentes, é refém do financiamento das potências econômicas e militares, que promovem uma nova repartição geopolítica do mundo. Esta intervenção é baseada em dois movimentos convergentes: de uma parte, promovem as ações militares convencionais, através de intervenção com tropas regulares, permitidas ou não pelas decisões da ONU, articuladas com intervenções militares – organizadas clandestinamente –  armando grupos dissidentes locais, que, por motivos religiosos ou políticos, estão prontos para a guerra civil; de outra parte, promovem intervenções nos Estados – de natureza política e econômica – para garantirem a rentabilidade do capital financeiro e terem acesso às últimas fontes estratégicas de energia fóssil, com seus governos amigáveis, sejam “democráticos” ou não.

Às vezes esta intervenção se faz em nome da “democracia”, especulando com as legítimas aspirações libertárias dos povos, como na “Primavera Árabe”, que, agora já se sabe, é um verdadeiro “inverno da nossa desesperança”, para lembrar um grande romance de Steinbeck. De onde saem as armas?  Todo o cidadão de bom senso deveria se perguntar, para tentar formar um juízo sobre estes massacres. Estas armas são fabricadas, testadas, vendidas, transportadas e chegam às mãos assassinas dos “regulares” e dos “irregulares”, com marca de origem e são levadas por caminhões, navios, aviões, que tem registros e locais de partida. Se são fabricadas e levadas, clandestinamente, é óbvio que isso é feito com a cumplicidade dos “governos invisíveis” do ocidente e de outras bandas, compostos por altos mandos militares, fabricantes de armas, serviços secretos e agências financeiras, que financiam ou “bancam” estas operações.

Nos anos 70, década que marca o início da chamada “crise da subjetividade”, como diz Beatriz Sarlo, no seu admirável  “Tempo Passado, cultura da memória e guinada subjetiva”, foi decretada “morte do sujeito”. Era o estruturalismo triunfante que constatava que uma humanidade sem subjetividade organizada, para lhe dar um rumo, seria afetada pelas leis da naturalidade: um processo “sem sujeito”, um  “processo da natureza”, como já pensava Lukács,  lá no início dos anos sessenta. Mas o processo social “sem sujeito”, reclamavam os hegelianos e os marxistas, seria, na verdade, ou dirigido  por um sujeito “oculto”, ou orientado por um “predicado” (um movimento), que lhe substituiria. A substituição seria só aparentemente espontânea, pois corresponderia a interesses bem orientados e claros, numa ordem mundial já sem um centro hegemônico absoluto. O mundo teria, então, uma força normativa superior aos estados e à política: o capital financeiro, aparentemente sem dono, passeando no globo, especulando e promovendo a acumulação sem trabalho. O sujeito inexistente agora tem face e se expressa pelos bancos centrais, agências de risco e instituições especulativas.

Não é de graça que, naquela época do reinado estruturalista, surgiu também, como “mote” de um futuro desenhado sem a intervenção do sujeito, a receita mais contundente do “fim da política”. Era o “there is no alternative”, que transformava a força normativa do capital financeiro em força especial para decisões de estado, que subjugariam a política e capturavam-na. Beatriz Sarlo, no mesmo livro, lembrando um outro grande escritor, o italiano Italo Svevo, traz uma reflexão deste, que serve para o todos os tempos: “O presente dirige o passado assim como o maestro, os seus músicos.”  Olhemos bem os fatos do passado, recentes ou remotos, eles podem nos dirigir para não aceitar a desumanidade e a barbárie como “coisas da natureza”, mas como produtos de escolhas políticas que podemos, algum dia, mudar.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


 

O Partido Comunista Marxista-Leninista e a luta contra o golpe imperialista

Publicada na Edição 476 do Jornal Inverta, em 13/02/2015

Apesar do círculo de fogo que o imperialismo preparou nos últimos anos contra a América Latina, ensaiando inclusive o retorno dos golpes com as experiências de Honduras (2009) e do Paraguai (2012), o ano de 2014 representou um fracasso para seus planos. A esquerda venceu as eleições em El Salvador, no Brasil, na Bolívia e no Uruguai. Além disso, os candidatos favoritos do imperialismo perderam na Costa Rica, no Panamá e na Colômbia, o que permitiu inclusive que, nesta última nação irmã, fossem mantidas as condições para o avanço dos diálogos de paz realizados em Havana entre as FARC-EP e o governo de Santos, que buscam acabar com a guerra que há mais de 50 anos as oligarquias impõem àquele país.

A reeleição da presidenta Dilma Rousseff, apesar de toda a campanha de desestabilização, deixou bem claro os limites do poder do imperialismo e de seus capachos. É muito significativo o fato da candidatura do PT ter sido conduzida pelos trabalhadores à vitória, mesmo contra a vontade de praticamente todos os ricos de nosso país, que não esconderam sua preferência por Aécio Neves.

Porém, essa vitória não foi bem digerida pelas classes dominantes, e a mesma articulação que esteve por trás da tentativa de Golpe Eleitoral foi mantida e intensificada, agora sob a palavra de ordem do Impeachment.

Como havíamos afirmado no documento “Denúncia do Golpe Eleitoral contra a reeleição de Dilma Rousseff no Brasil”, o setor mais reacionário das oligarquias brasileiras, aliado ao imperialismo, busca retomar o governo através de um golpe, travando a guerra suja em três frentes: a guerra econômica, a guerra midiática e as infiltrações do imperialismo no Judiciário e na Polícia Federal (que sempre foi controlada pelos Estados Unidos, como admitiu, em 2004, Carlos Costa, chefe do FBI por 4 anos em nosso país). Neste momento, estes três movimentos coincidem com especial força em uma ação que tenta destruir a Petrobrás, a maior empresa do Brasil.

O cartel formado pelas empresas de petróleo dos países imperialistas (CHEVRON, ESSO, BP, SHELL, etc) nunca aceitou o regime de partilha criado em 2010 para regulamentar a produção no pré-sal, que mesmo sendo insuficiente do ponto de vista dos trabalhadores, pois não garante o monopólio estatal sobre a produção de petróleo (instituído em 1953), esse regime é um avanço em relação à lei de Petróleo do governo FHC, que abriu o mercado para as empresas estrangeiras.

O modelo de partilha foi bem sucedido, a empresa elevou sua produção batendo diversos recordes, finalizando 2014 com uma produção média de 2,17 milhões de barris de petróleo por dia, e a produção no pré-sal ultrapassou em dezembro os 700 mil barris diários. Em três anos, a exploração do pré-sal chegou ao mesmo volume de produção que a empresa levou mais de três décadas para atingir.

Para o desespero do imperialismo, a exploração do pré-sal pelo Brasil somou-se à constituição do Banco dos BRICS, com capitais suficientes para rivalizar com o FMI, e o anúncio de uma série de bilionários investimentos chineses na infraestrutura latino-americana. Tudo isso representa uma ameaça com a qual a hegemonia dos Estados Unidos não pode conviver e a burguesia daquele país sabe que a única chance de conter o avanço do mundo multipolar é sabotar essas iniciativas enquanto elas ainda estão na sua infância.

A tentativa de se destruir a Petrobrás e com isso afundar o governo Dilma no início do seu segundo mandato é a resposta do imperialismo à criação dos BRICS. Além disso, a escalada do conflito na Ucrânia, levando a OTAN às portas da Rússia, o fato de Obama ter recebido o Dalai Lama, ingerindo-se nos assuntos internos chineses, e a visita do presidente dos EUA à Índia são ações que, nestes primeiros meses de 2015, buscam impedir a consolidação deste bloco.

A Petrobrás está sendo cercada de forma semelhante ao que ocorre com a Gazprom, gigante petrolífera russa, que foi alvo de sanções econômicas aplicadas pelo governo dos EUA. No caso da empresa brasileira, a ação foi mais sutil, mas tudo caminha para que no futuro os EUA a sancionem também, alegando prejuízo dos investidores da Bolsa de Nova Iorque.

O que dizer do fato do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ter embarcado no dia 6 de fevereiro aos Estados Unidos para solicitar cooperação da justiça daquele país nas investigações? Nosso país pedirá colaboração justamente ao principal interessado na destruição da Petrobrás.

Um dos principais alvos da NSA, agência de espionagem dos EUA, conforme documentos vazados por Edward Snowden, a Petrobrás teve seus computadores invadidos e todos os seus dados expostos. A NSA conta com centenas de milhares de analistas e com os mais sofisticados computadores do mundo, o que lhes deu capacidade de processar toda essa informação que incluía todas as comunicações entre funcionários e diretores, toda a contabilidade e todos os documentos técnicos da empresa. Alguém duvida que este seja um componente importante para entendermos a Operação Lava-jato?

Passando ao plano da guerra midiática, sempre cabe ressaltar que o principal aliado dos imperialistas e protagonista dos intentos fascistas é a mídia burguesa, que age impunemente no Brasil semeando o ódio, o preconceito e os antivalores do capitalismo. Essa mídia é controlada por poucas famílias, todas aliadas e saudosistas da ditadura militar, a começar pela família Marinho, que se tornou a mais rica do Brasil, tendo acumulado R$ 66,5 bilhões às custas do povo brasileiro.

Já a guerra econômica é operada principalmente através dos mercados financeiros e de instituições como as agências de classificação, que concedem notas para as empresas e assim determinam quais terão acesso ao crédito e quais não terão. A volatilidade no preço das ações da Petrobrás, que chegaram a cair e subir mais de 10% em apenas um dia, também deveria estar sendo investigada. Esse movimento, completamente alheio à produção da empresa, é uma das formas pela qual os grandes capitalistas centralizam ainda mais capital.

A tentativa de paralisar a Petrobrás, as empresas que gravitam em torno dela e as grandes empreiteiras, que desde a ditadura militar tocam as obras de infraestrutura, ameaçam a formação de capital fixo em nosso país, um presente para aqueles que querem manter a atual divisão internacional do trabalho no mundo. Já ocorreram dezenas de milhares de demissões por conta da paralisação de obras, e outras centenas de milhares de empregos estão em risco.

Em um nível mais aprofundado, o pano de fundo para os problemas econômicos vividos mundialmente é o agravamento da Crise do Capital, que têm sua origem nos países desenvolvidos, mas que é sentida principalmente nos países em desenvolvimento por conta dos mecanismos de centralização, como as taxas de juros, através dos quais a mais-valia explorada aqui é remetida em massa para os países centrais.

Isso explica as ações de seus mercenários, lesas-pátrias e toda uma gangue de malfeitores e bandidos que atuam em todo o mundo, mas se concentram especialmente nas regiões ricas em matérias-primas, com mão de obra abundante e com baixa aplicação de tecnologia na produção (pequena formação de capital fixo), como é o caso do Brasil.

Enquanto a riqueza não para de se concentrar no polo dos detentores do capital, no polo oposto nosso povo sofre com os efeitos da decomposição desta ordem social podre. Exemplos disso são a falência dos sistemas de educação e saúde, a crise do transporte público, além das balas perdidas que fulminam nossas crianças e adolescentes, criando uma comoção usada de forma calhorda pela mídia para justificar a pena de morte vigente, embora não legalizada em nosso país, sem nos esquecermos das drogas, que também servem para legitimar a matança, levando a população que não entra no mercado de trabalho a se acumular nos caixões e cemitérios.

Qual deve ser a resposta da classe operária diante desta situação? No plano tático devemos denunciar as manobras do imperialismo que buscam desestabilizar o governo da presidenta Dilma e trabalharmos pela união de todas as forças progressistas em nosso país no combate ao golpismo. Diante da virulência dos ataques imperialistas e da gravidade do momento atual, a posição da classe operária deve ter um componente defensivo, ou seja, defender tudo o que já foi conquistado e não permitir o retrocesso desejado por aqueles que foram recentemente derrotados no plano eleitoral. A própria presidenta se manifestou publicamente, assim como o ex-presidente Lula, na celebração dos 35 anos do PT, denunciando o Golpe pelo seu nome. Devemos escolher quais batalhas travaremos agora e não aceitarmos a pauta criada pela imprensa burguesa, principalmente pelas Organizações Globo.

No plano estratégico, a Crise do Capital traz à tona as condições objetivas em nosso território para que a classe operária supere o sistema do Capital, e a nós, comunistas revolucionários, cabe a tarefa de demonstrar aos trabalhadores proletários e seus aliados o esgotamento da social-democracia e que a única saída para a humanidade é a criação de um mundo sem patrões, a sociedade socialista, dirigida diretamente pelas organizações subjetivas da classe operária. Por isso o PCML deve avançar em seu trabalho de Refundação do Partido Comunista em todo o país e aprofundar seus esforços na organização dos Comitês de Luta pelo Socialismo.

Partido Comunista Marxista-Leninista (Brasil)


 

Publicado em 05/02/2015

Kucinski debate suas ‘Cartas a Lula’ com Franklin Martins e André Singer

Publicado no Carta Maior

O livro de Kucinski reúne textos diários escritos por ele com a análise dos jornais do dia e sugestões de como Lula deveria reagir.

 

Marcel Gomes

Roberto Brilhante / Carta Maior

São Paulo – Conhecido pelo embate interno que travou contra o chamado “paloccismo” no primeiro mandato de Lula (2003-06), o jornalista e ex-assessor especial da Secretária de Comunicação Social da Presidência (Secom) Bernardo Kucinski lamentou que o segundo mandato de Dilma Rousseff se inicie com concessões ao sistema financeiro, entre elas alta de juros e arrocho fiscal.

“Não sei se é [a histórica se repetindo] como farsa, mas [é a história] do predomínio dos bancos em nosso país”, disse Kucinski na noite de quarta-feira (4), em São Paulo, ao participar de um debate promovido pela Carta Maior sobre seu novo livro, “Cartas a Lula – o jornal particular do presidente e sua influência no governo do Brasil” (Edições de Janeiro, R$ 49,90, 464 páginas).

Participaram do encontro o ex-ministro da Secom Franklin Martins (2007-10) e o ex-porta-voz do governo Lula André Singer (2003-07). A mediação coube ao jornalista e professor universitário Gilberto Maringoni.

O livro de Kucinski reúne textos diários escritos por ele com a análise dos jornais do dia e sugestões de como o Lula deveria reagir. Para redigi-los, o jornalista acordava às cinco horas da manhã, lia as publicações que haviam sido finalizadas horas antes e entregava ao presidente o boletim às sete horas. Um pequeno grupo de ministros e assessores também recebia o material.

Vistos agora, os temas tratados por Kucinski trazem um panorama sobre o primeiro mandato de Lula, com textos sobre o Fome Zero, a crise dos Correios e o Mensalão. Mas o tema que mais interessava ao jornalista era a política econômica, não só por ser economia a principal área de atuação dele quando atuava como repórter e editor, mas por se tratar do espaço em que mais claramente se manifesta a “hegemonia burguesa” em nosso país – nas suas próprias palavras.

O paloccismo, manifestado em um governo em tese dos trabalhadores, era um claro sinal disso. Ao analisar veículos que tinham a credibilidade para pautar a agenda pública, como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, Kucinski partia de um pressuposto: esses diários cumpriam sua vocação de defender os interesses da burguesia. Daí a aprovação deles às medidas do então ministro da Fazenda Antonio Palocci (2003-06).

Quando Palocci anunciou um plano de arrocho fiscal e o aumento do salário mínimo foi sacrificado, Kucinski partiu para o embate e escreveu para Lula: “Os que estimam o valor adequado do salário mínimo a partir unicamente da ótica da despesa […] não consideram as entradas propiciadas por um mínimo maior na arrecadação”. É uma crítica que voltou a ser atual. Joaquim Levy, escolhido por Dilma para ser o ministro da Fazenda, era o secretário do Tesouro de Palocci e já anunciou diversas medidas de arrocho fiscal.

Hoje professor aposentado da USP, Kucinski foi um ativo militante da imprensa alternativa durante da ditadura militar. Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, professora de química da USP, foi sequestrada por agentes da repressão em 1974. Desaparecida até hoje, teve sua história narrada no premiado romance “K”, lançado por Bernardo em 2012.

Com a volta da democracia, Kucinski se engajou no PT e passou a atuar próximo a Lula. Em 1993, participou das caravanas da cidadania, uma série de viagens pelo país promovida pelos petistas em preparação à campanha presidencial do ano seguinte. Foi quando começou a escrever os boletins sobre a mídia, primeiro batizados de cartas ácidas, e depois de cartas críticas.

Quando aceitou ir para o governo e incluir a atividade na rotina palaciana, tinha o projeto pessoal de ajudar o governo a vencer a batalha da comunicação, para ele uma necessidade da disputa democrática. Sua meta era reformar a comunicação do governo, vista por ele como débil.

“Quando chegamos, vimos uma estrutura de Estado gigantesca, com grande potencial, mas sem uma política de comunicação”, recordou. “Não havia quaisquer ritos para atender os jornalistas e cada ministro tinha o seu assessor de imprensa, que trabalhava para o próprio ministro e não segundo a política geral de comunicação do governo”.

Kucinski deixou Brasília ao final do primeiro mandato de Lula, manifestando frustação com os rumos do governo. “Foram anos de petismo. Eu cheguei ao governo muito autoconfiante, um sentimento que eu nunca tinha tido na vida. E logo eu, que sou conhecido como um sujeito mal-humorado. Mas, quando eu perdi esse sentimento, comecei a pensar em sair”, revelou.

Indo mais a fundo nessa reflexão, Kucinski admitiu que o governo Lula mudou o país para melhor, mas criticou a incapacidade de ter criado uma nova hegemonia para enfrentar a burguesia e seus canais midiáticos – segundo ele, por culpa do próprio PT e das organizações de base que o sustentam.

“Minha percepção é a de que nosso campo popular está sempre muito preocupado com sua luta interna. Todos os mecanismos de comunicação do PT, da CUT, da Fundação Perseu Abramo, dos sindicatos acabam se voltando para a disputa interna. As próprias direções dos veículos são definidas por disputa interna”, lamentou.

Para Kucinski, o caso da corrupção na Petrobras é paradigmático acerca da falta de vozes alternativas na imprensa. O discurso midiático atrelou ao PT as denúncias sobre a companhia, quando “se sabe que a corrupção na empresa vem de décadas, que praticamente todo contrato de obras públicas no Brasil e também em outros países financia campanhas políticas nas democracias de massa”. “Um governo precisa ter instrumentos de comunicação para fazer esse esclarecimento para a população”, afirmou.

Ao ressaltar que as forças sociais e políticas que lutam contra o neoliberalismo precisam formar uma nova maioria para avançar, o ex-ministro Franklin Martins também destacou a importância da comunicação nesse processo. “Você entra no táxi em São Paulo e escuta a CBN e a Joven Pan ´sentando a mamona´ no governo. E não se tem resposta”, criticou.

Martins lamentou o fato de que no Brasil as forças políticas progressistas que formaram maiorias “não foram capazes de criar órgãos de imprensa”. O problema persiste no governo Dilma. “Vocês perceberam que não se fala em TV Dilma como se falava TV Lula?”, ressaltou ele à plateia, referindo-se aos investimentos do governo Lula para alavancar a TV Brasil. “Isso acontece porque o governo se acomodou, não investiu mais”, afirmou.

Ao contrário de Kucinski, que aponta retrocesso neste início de governo Dilma, Martins vê o país em um novo patamar. “A Dilma não mudou de lado em dois meses. Quais são as prioridades? Não é mais três refeições por dia e pleno emprego, mas banda larga pra todos, Minha Casa, Minha Vida, e transporte público. É ali que tem de estar o subsídio”, afirmou.

Entretanto, para que se crie uma maioria social e política em apoio a essas pautas, o ex-ministro pede que Dilma fale mais. “Ela não se comunica”, criticou ele. O mesmo recado foi para o PT: “Ou o partido se transforma, ou está frito, não dá para funcionar com a lógica de seus assessores”.

Já o ex-porta-voz André Singer manifestou preocupação ainda maior com os rumos do governo Dilma. Para ele, professor de ciência política da USP e um dos intelectuais que mais produzem reflexão sobre o legado do governo Lula, as concessões feitas pela presidente ao programa neoliberal surpreendem.

“Esse conjunto de concessões feitas dez anos depois do processo em que governos foram orientados pelo que eu chamo de lulismo é preocupante, porque havia a expectativa de que ele produzisse uma correlação de forças que tornasse desnecessárias essas concessões”, ponderou Singer. Por que isso ocorreu ele admite ainda não ter resposta.

“A publicação do livro do Bernardo neste momento em que o problema retorna pode ajudar a iluminar o processo”, disse ele. “Cartas a Lula”, avalia Singer, deixa claro que a política econômica é o coração da política – “Lá eu vi que de fato é o coração” – e que concessões nessa matéria não deveriam ser aceitas.

Singer se contrapõe, assim, à análise do ex-ministro Franklin Martins. Na visão dele, mais próxima de Kucinski, ao tomar medidas econômicas que criticara no período da campanha eleitoral, Dilma cria “uma confusão na cabeça da maioria”. “Minha avaliação, então, é que não havia correlação de forças para que aquelas medidas não fossem tomadas. Se a força da burguesia continua grande, eu pergunto então: o que estamos construindo?”, questionou o ex-porta-voz.

Para Kucinski, o “fenômeno da hegemonia burguesa, da criação de sentidos, da vitória de uma proposta sobre outras não é só uma questão brasileira, mas mundial”. Nesse sentido, ele esboça uma reflexão que não poupa críticas à própria classe trabalhadora. Segundo ele, decisões tomadas pelo governo Lula ocorriam em nome de interesses corporativos, ainda que advindos dos próprios trabalhadores.

“É o caso da crise da indústria automobilística. O governo optou cortar os impostos, atendendo sua base, mas em conflito com o interesse social do povo. Nós não precisamos de mais automóveis, mas de transporte público, trem e metrô”, afirmou. É essa franqueza quase absoluta que o leitor encontrará no livro. “São cartas curtas, objetivas, sem papas na língua, sem medo de criticar o próprio governo”, explica Kucinski.


 


 

Publicado em 21/01/2015 no blog Conversa Afiada, do inalcançável Paulo Henrique Amorim.

Furo: Stedile reproduz
encontro com Papa

Francisco: latifúndio é inaceitável eticamente

 

 

Nesta quarta-feira (21), em entrevista a blogueiros sujos, João Pedro Stedile revelou detalhes do encontro com o Papa Francisco, ocorrido em novembro de 2014. Segundo o líder do Movimento Sem Terra (MST), o religioso admitiu ser “inaceitável” o latifúndio.

“O latifúndio é inaceitável eticamente aos olhos dos valores e doutrinas que pregamos. Nenhuma família pode estar sem casa, sem moradia digna. Nenhum sem terra pode estar sem terra. O latifúndio ser distribuído é uma posição ética”, disse o Papa no encontro.

“Ninguém pode se arvorar ao direito de se apropriar de um bem da natureza”, teria dito o Papa. “Ele vai fazer encíclica sobre ecologia e mudanças climáticas”, contou Stedile.

Quanto à reforma agrária, para Stedile, a discussão mudou o sentido no século XXI. “Agora, o latifúndio mudou de cara. Por trás da agricultura, está as empresas transnacionais, que controlam o comércio e a produção e estão os bancos que as financiam. É esse modelo que se chama agronegócio”, afirmou usar como exemplo o banqueiro Daniel Dantas. “Ele comprou no sul do Pará, com dinheiro americano, 600 mil hectares”.

“Todas as reformas agrárias ao longo do século XX levaram ao desenvolvimento. Estados Unidos, ainda no século XIX e o Japão após a segunda guerra, por exemplo”, completou Stedile.

E criticou a imprensa. “Temos dificuldade de pautar a reforma agrária porque a imprensa é hegemonizada pelo agronegócio. No ano passado o MST fez duas das suas maiores ocupações. Não saiu uma linha na imprensa”.

“No Brasil, desde Celso Furtado tenta-se a reforma agrária. Ele faria a mais generosa delas”, confessou, para completar: “Elegemos Lula e a reforma não saiu” Apesar da crítica, Stedile elogiou os anos de “neodesenolvimento” com o Presidente Lula e com a Presidenta Dilma.

No evento, o MST lançou o seu novo site. “Internet é um instrumento importante de comunicação. A intenção é democratizar tecnologia para outros movimentos”, concluiu.

Leia outras frases:

“A democracia no Brasil está sequestrada. Dez empresas elegeram 70% dos parlamentares. Precisamos da Reforma Política”

“Depois de conquistada a terra, a luta continua. O nosso desafio é a produção de alimentos agroecológicos”

“Temos que priorizar a nossa agroecologia para a alimentação escolar”

Gostamos (nós, da esquerda) de fazer discursos, mas somos ruins de comunicação de massa.

O tema (reforma agrária), que permeou o século XX, mudou o seu sentido. A terra deve ser para quem nela trabalhe foi lançado pelo Zapata.

A burguesia nacional tinha interesse na reforma agrária.

A eleição do Papa é resultado da crise da Igreja

Construímos um encontro do papa com movimentos sociais

Ele se recusa que beije a mão dele.

É uma figura sui generis para o cargo que ocupa

Ele participou da discussão

São Paulo ampliou em 8 anos o monocultivo da cana para 6 milhões de hectares  (por isso não chove lá)

Manifestação junho 2013 não mobilizou trabalhador

Papa se considera peronista

Ligado trabalhadores urbanos

Tentar encontro mundial de movimentos populares 200 pessoas

Emocionado – se recusa beijar mão

Espaço dos sínodos – nunca entrei nessa sala do sínodo

É inaceitável uma família sem moradia

Nunciatura da Bolívia foco oposição Evo

Evo pela primeira vez encontrou Papa

Programa (de desenvolvimento do Governo) se esgotou E é dependente exterior

Brasil é único lugar do mundo em que trabalhador paga para trabalhar

Dez empresas financiaram parlamentares – democracia sequestrada !

Dá os Lava Jato da vida !

Steinbruch jantava no Natal com Mercadante e agora foi pra Oposição

Governo tem que vir para a esquerda

Estamos convictos de que devemos reflorestar esse país. É o bolsa-árvore.

É possível, sim, a Tarifa Zero

O ópio do povo nos dias de hoje é a Televisão

A contradição do agronegócio é que ele é antissocial. Eliminou mais de 5 milhões de empregos

O agronegócio ainda prejudica o meio ambiente e contamina os alimentos com agrotóxicos

No Brasil a cada ano surgem 500 Mil novos casos de cancer devido aos venenos no campo

O nosso papel é colocar o povo na rua. Essa é a melhor maneira de politizar as massas

Estamos no esforço de construção de uma grande frente de esquerda para defender os direitos conquistados


A concepção idealista dos Direitos Humanos criada pelos homens

Prof. Laércio Júlio da Silva*

Tenho vários amigos religiosos que me orgulham muito pela sua vocação e por sua opção pelos pobres. Um deles é Dom Orvandil Barbosa, Bispo Anglicano, que escreve assiduamente nesse jornal. No meu ultimo artigo “Dialética e Direitos Humanos na França e no Mundo”, o emérito Bispo, querido amigo, no nosso interminável debate entre os que creem e os que não creem, fez várias considerações que gostaria de discorrer agora. Ao elogiar o referido artigo ele sugeriu que aprofundasse melhor o tema da concepção idealista dos Direitos Humanos, o que faço agora. A minha afirmação foi que “baseado na visão teocrática, os direitos humanos seriam direitos que ultrapassam o Estado, vindos de um caráter absoluto, imutável e universal, revelados por um Deus onipotente em termos de sua inquestionável justiça, e onipresente (em qualquer uma de suas formas, advindas das várias religiões), sendo assim, inerente aos homens oriundos de sua própria razão instintiva. As sociedades alicerçadas em leis religiosas, na atualidade e em outras épocas, fundamentam o direito das pessoas em leis espirituais ditadas por um ser superior, sendo seus representantes na Terra meros aplicadores do ordenamento divino. Os recentes atentados que mataram 12 e depois mais pessoas em ataques na França baseiam-se nos direitos humanos concebidos por uma razão que transcende o material e dita normas vindas do dogma seguido cegamente em razão do que é sagrado e profano pela religião”. Para o meu amigo Bispo Orvandil, faltou esmiuçar os mecanismos que me levaram a essa afirmação.

Pois bem, diante das minhas convicções de que quem faz é o homem, a crença com base no fundamentalismo religioso está determinada a destruir a educação científica de milhares de mentes jovens pelo mundo afora. Trago a tona essa discussão que trás em si o entendimento de quem se entrega ao extremo de práticas “terroristas” em nome da religião achando que irá ganhar o Reino do Céu ou todas as virgens que quiser ter no Paraíso. Não me refiro somente às religiões Islâmicas, que atualmente se fazem alvo do pensamento comum estampado na grande imprensa pelas ações na França, mas a todas as religiões incluindo as Cristãs; ou alguém já se esqueceu do terror secular entre irmãos católicos e protestantes na recente história da Irlanda do Norte?

Uma das punições mais rígidas de uma religião fundamentalista é reservada ao acusado de blasfêmia. Hoje, Raif Badawi da Arábia Saudita, está na cadeia condenado pelo governo teocrático de seu país a receber mil chicotadas infligidas em público, cumprindo a pena de um único “crime”: exercer o seu direito de liberdade de expressão, ao manter um site onde ele promove o debate público de ideias e opiniões. O debate de ideias é o fundamento do processo metodológico dialético científico. De consistência física fraca, na sua primeira sessão de 50 chicotadas foi para o hospital e encontra-se atualmente aguardando a “liberação” do médico para continuar a execrável punição. Provavelmente não resistirá até a chibatada de número mil! A Anistia Internacional considera Raif Badawi um prisioneiro de consciência e exige a sua incondicional liberdade imediata. Em 1985, o então Frei Leonardo Boff foi condenado pelo Vaticano a um ano de “silêncio obsequioso”, perdendo sua cátedra e suas funções editoriais na Igreja Católica. Em pleno Século XXI, o crime de blasfêmia ainda consta do Código Civil Britânico. O fundamentalismo religioso exige a unanimidade baseado na força do dogma, e como dizia Nelson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.” Nessa sábia afirmação reside a prerrogativa do fundamentalismo de qualquer espécie. O dogma prediz que pau é pedra. Portanto, quem é você para dizer que não é pedra? Se você não vê ali uma pedra, serás penalizado!

Afirmo categoricamente que a sociedade moderna precisa de mais ciência. Só a ciência voltada para a análise da sociedade irá curar a “bruxaria instalada no Mundo assolado pelos demônios” como diria ironicamente o finado cientista Carl Sagan em seu magnífico livro lançado com esse mesmo título. Os métodos científicos, com todas as suas imperfeições, podem ser usados para aperfeiçoar os sistemas sociais. Toda a verdadeira ciência se alicerça em experimentos e a sociedade é feita de etapas evolutivas baseada em legislações que se aperfeiçoam a cada dia. As mudanças na educação, na saúde e nas leis, tudo se torna um experimento do método científico dialético. Essa metodologia deve ser empregada como antidoto para os males do fanatismo. Karl Marx, Friedrich Engels, Darci Ribeiro, Florestan Fernandes e outros grandes cientistas políticos interpretaram o mundo e o Brasil diferentemente no sentido de entender e modificar para melhor a nossa realidade. Oque você acha de agirmos para transformá-lo?(…) Um novo mundo é possível se pensarmos em uma vida planejada e uma educação laica que priorize principalmente a liberdade de expressão e outras garantias relacionadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos que graça esperando resposta da sociedade mundial desde 1948. No entanto, a verdadeira liberdade só virá com mais educação metodologicamente científica, saúde universalizada e dignidade para que possamos nos emancipar da escravidão mental do absolutismo das ideias. Saber o que acontece quando não temos esses direitos, aprender a exercê-los e protege-los deveria ser um pré-requisito fundamental para ser cidadão do mundo.

*8Laércio Júlio da Silva é administrador hoteleiro formado pela Ecole Hôtelière de Glion, Suiça. Email: laerciojs@gmail.com


19 de jan de 2015

O TERROR, O “OCIDENTE”, E A SEMEADURA DO CAOS.

Mauro Santayana no seu blog

(Jornal do Brasil) – Há alguns dias, terroristas franceses, ligados, aparentemente, à Al Qaeda, atacaram a redação do jornal satírico parisiense Charlie Hebdo, em represália pela publicação de caricaturas sobre o profeta Maomé.

Doze pessoas foram assassinadas, entre elas alguns dos mais famosos cartunistas e intelectuais do país, e dois cidadãos de origem árabe, um deles, estrangeiro, que trabalhava há pouco tempo na publicação, e um membro das forças de segurança que estava nas imediações.

Logo em seguida, houve, também, outro ataque, a um supermercado kosher na periferia de Paris, em que 4 judeus franceses e estrangeiros morreram.

Dias depois, milhões de pessoas, e personalidades de vários países do mundo, se reuniram nas ruas da capital francesa, para protestar contra o atentado, e se manifestar contra o terrorismo e pela liberdade de expressão.

Na mesma primeira quinzena de janeiro, explodiram carros-bomba, e homens-bomba, também ligados a grupos radicais islâmicos, no Líbano (Beirute), na Síria (Aleppo), na Líbia (Benghazi), e no Iraque (Al-Anbar), com dezenas de mortos, em sua maioria civis.

Mas, como sempre, não seria normal esperar que algum destes fatos tivesse a mesma repercussão do atentado em Paris, capital de um país europeu, ou que a alguém ocorresse produzir cartazes e neles escrever Je suis Ahmed, ou Je suis Ali, ou Je suis Malak, Malak Zahwe, a garota brasileira, paranaense, de 17 anos, que morreu na explosão  de um carro-bomba, junto com mais 4 pessoas (20 ficaram feridas), no dia 2 de janeiro, em Beirute.

No entanto, os homens, mulheres e crianças, mortos, todos os dias, no Oriente Médio e no Norte da África, são tão frágeis e preciosos, em sua fugaz condição humana,  quanto os que morreram na França,  e vítimas dos mesmos criminosos, criados pela onda de radicalização e rápida expansão do fundamentalismo islâmico, nos últimos anos.

Raivosas, autoritárias, intempestivas, numerosas vozes se alçaram, em vários países, incluído o Brasil, para gritar – em raciocínio tão ignorante quanto irascível – que o terrorismo não tem que ser “compreendido” e, sim, “combatido”.

Os filósofos e estrategistas chineses ensinam, há séculos, que sem conhecê-los, não é possível vencer os eventuais adversários, nem mudar o mundo.

Além disso, não podemos, por aqui, por mais que muitos queiram emular os países “ocidentais”, em seu ardoroso “norte-americanismo” e “eurocentrismo”, esquecer que existem diferenças históricas, e de política externa, entre o Brasil, os EUA, e países da OTAN como a França.

Podemos dizer que Somos Charlie, porque defendemos a liberdade e a democracia, e não aceitamos que alguém morra por fazer uma caricatura, do mesmo jeito que não podemos aceitar que uma criança pereça bombardeada pela OTAN no Afeganistão ou na Líbia, ou porque estava de passagem, no momento em que explodiu um carro-bomba, por um posto de controle em Aleppo, na Síria.

Mas é preciso lembrar que, ao contrário da França, nunca colonizamos países árabes e africanos, não temos o costume de fazer charges sobre deuses alheios em nossos jornais, não jogamos bombas sobre países como a Líbia, não temos bases militares fora do nosso território, não colaboramos com os EUA em sua política de expansão e manutenção de uma certa “ordem” ocidental e imperial, e, talvez, por isso mesmo – graças a sábia e responsável política de Estado, que inclui o princípio constitucional de não intervenção em assuntos de outros países – não sejamos atacados por terroristas em nosso território.

As raízes dos atentados de Paris, e do mergulho do Oriente Médio na maior, e, com certeza, mais profunda  tragédia de sua história, não está no Al Corão ou nas charges contra o Profeta Maomé, embora estas últimas possam ter servido de pretexto para ataques como o que ocorreu em Paris.

Elas começaram a se tornar mais fortes, nos últimos anos,  quando o “ocidente”, mais especificamente alguns países da Europa e os EUA, tomaram a iniciativa de apoiar e insuflar, usando também as redes sociais, o “conto do vigário” da Primavera Árabe em diversos países, com a intenção de derrubar regimes nacionalistas  que, com todos os seus defeitos, tinham conquistado certo grau de paz, desenvolvimento e estabilidade para seus países nas últimas décadas.

Inicialmente promovida, em 2011, como “libertária”, “revolucionária”, a Primavera Árabe iria,  no curto espaço de três anos, desestabilizar totalmente a região, provocar massacres, guerras civis, golpes de Estado, e alcançar, por meio da  intervenção militar direta e indireta da OTAN e dos EUA em vários países, a meta de tirar do poder,  a qualquer custo, regimes que lutavam para manter um mínimo de independência e soberania em suas relações com os países mais ricos.

Quando os EUA, com suas “primaveras” – que não dão flores, mas são fecundas em crimes e cadáveres – não conseguem colocar no poder um governo alinhado com seus interesses, como na Ucrânia e no Egito, jogam irmão contra irmão e equipam com armas, explosivos, munições, terroristas, bandidos e assassinos para derrubar quem estiver no comando do país.

O objetivo é destruir a unidade nacional, a identidade local, o Estado e as instituições, para que essas nações não possam, pelo menos durante longo período, voltar a organizar-se, a ponto de tentar desafiar, mesmo que em pequena escala, os interesses norte-americanos.

Foi assim que ocorreu com a intervenção dos EUA  e de aliados europeus como a Itália e a França – contra a recomendação de Brasil, Rússia, Índia e China, no Conselho de Segurança da ONU –  no Iraque, na Líbia e na Síria.

Durante décadas, esses países – com quem o Brasil tinha, desde os anos 1970, boas relações – viveram sob relativa estabilidade, com a  economia funcionando, crianças indo para a escola, e diferentes etnias, religiões e culturas, dividindo, com eventuais disputas, o mesmo território.

Estradas, rodovias, sistemas de irrigação, foram construídos – também com a ajuda de técnicos, operários  e engenheiros brasileiros – com os recursos do petróleo, e países como o Iraque chegavam a importar automóveis, como no caso de milhares de Volkswagens Passat fabricados no Brasil, para vender aos seus cidadãos de forma subsidiada.

Na Líbia de Muammar Kadafi, segundo o próprio World Factbook da CIA, 95% da população era alfabetizada, a expectativa de vida chegava, para os homens, segundo dados da ONU, a 73 anos, e a renda per capita e o IDH estavam entre os maiores do Terceiro Mundo, mas esses dados nunca foram divulgados normalmente pela imprensa “ocidental”.

Pode-se perguntar a milhares de brasileiros que estiveram no Iraque, que hoje têm entre 50 e 70 anos de idade, se, naquela época, sunitas e xiitas se matavam aos tiros pelas ruas, bombas explodiam em Basra e Bagdá todos os dias, como explodem hoje, a qualquer momento, também em Trípoli ou Damasco,  ou milhares de órfãos tentavam atravessar montanhas e rios sozinhos, pisando nos restos de outras crianças, mortas em conflitos incentivados por “potências” estrangeiras, ou tentavam sobreviver caçando, a pedradas, ratos por entre escombros das casas e hospitais em que nasceram.

São, curdos, xiitas, sunitas, drusos, armênios,  cristãos maronitas, inimigos?

Antes, trabalhavam nos mesmos escritórios, viviam nas mesmas ruas, seus filhos frequentavam as mesmas salas de aula, mesmo que eles não tivessem escolhido, no início, viver como vizinhos.

Assim como no caso de hutus e tutsis em Ruanda, e em inúmeras ex-colônias asiáticas e africanas, as  fronteiras dos países do Oriente Médio foram desenhadas, na ponta do lápis, ao sabor da vontade do Ocidente, quando da partilha do continente africano por europeus, obedecendo não apenas ao resultado de Conferências como a de Berlim, em 1884, mas também à máxima de que sempre se deve “dividir para comandar”, mantendo, de preferência,  etnias de religiões e idiomas diferentes dentro de um mesmo território ocupado pelo colonizador.

Eram Saddam Hussein e Muammar Kadafi, ditadores? É Bashar Al Assad, um déspota sanguinário?

Quando eles estavam no poder, não havia atentados terroristas em seus países.

E qual é a diferença deles e de seus regimes, para os líderes e regimes fundamentalistas islâmicos comandados por xeques e emires, na mesma região, em que as mulheres – ao contrário dos governos seculares de Saddam, Kadafi e Assad – são obrigadas a usar a burka, não podem sair de casa sem a companhia do irmão ou do marido,  se arriscam a ser apedrejadas até a morte ou chicoteadas em caso de adultério, e não há eleições, a não ser o fato de que esses regimes são dóceis aliados do “ocidente” e dos EUA?

Se os líderes ocidentais viam Kadafi como inimigo, bandido, estuprador e assassino, por que ele recebeu a visita do primeiro-ministro britânico Tony Blair, em 2004; do Presidente francês Nicolas Sarkozy – a quem, ao que tudo indica, emprestou 50 milhões de euros para sua campanha de reeleição – em 2007; da Secretária de Estado dos EUA, Condoleeza Rice, em 2008; e do primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi em 2009?

Por que, apenas dois anos  depois, em março de 2011 – depois de Kadafi anunciar sua intenção de nacionalizar as companhias estrangeiras de petróleo que operavam, ou estavam se preparando para entrar  na Líbia (Shell, ConocoPhillips, ExxonMobil, Marathon Oil Corporation, Hess Company)  esses mesmos países e os EUA, atacaram, com a desculpa de criar uma Zona de Exclusão Aérea sobre o país, com 110 mísseis de cruzeiro, apenas nas primeiras horas, Trípoli, a capital líbia, e instalações do governo, e armaram milhares de bandidos – praticamente qualquer um que declarasse ser adversário de Kadafi – para que o derrubassem, o capturassem e finalmente o espancassem, a murros e pontapés, até a morte?

Ora, são esses mesmos bandidos, que, depois de transformar, com armas e veículos fornecidos por estrangeiros, a Líbia em terra de ninguém, invadiram o Iraque e, agora, a Síria, e se uniram para formar o Estado Islâmico, que pretende erigir uma grande nação terrorista juntando o território desses três países, não por acaso os que foram mais devastados e destruídos pela política de intervenção do “ocidente” na região, nos últimos anos.

Foram os EUA e a Europa que geraram e engordaram a cobra que ameaça agora devorar a metade do Oriente Médio, e seus filhotes, que  também armam rápidos botes no velho continente. Serpentes que, por incompetência e imprevisibilidade, depois da intervenção na Líbia,  a OTAN e os EUA não conseguiram manter sob controle.

Os Estados Unidos podem, pelo arbítrio da força a eles concedida por suas armas e as de  aliados – quando não são impedidos pelos BRICS ou pela comunidade internacional – se empenhar em destruir e inviabilizar pequenas nações – que ainda há menos de cem anos lutavam desesperadamente por sua independência – para tentar estabelecer seu controle sobre elas, seu povo e seus recursos, objetivo que, mesmo assim, nunca conseguiram alcançar militarmente.

Mas não podem cometer esses crimes e esses equívocos, diplomáticos e de inteligência, e dizer, cinicamente, que o fizeram em nome da defesa da Liberdade e da Democracia.

Assim como não deveriam armar bandidos sanguinários e assassinos para combater governos que querem derrubar, e depois dizer que são contra o terrorismo que eles mesmos ajudaram a fomentar, quando esses mesmos terroristas, além de explodir bombas e matar pessoas em Bagdá, Damasco ou Trípoli, todos os dias, passam a fazer o mesmo nas ruas das cidades da Europa ou dos próprios Estados Unidos.

O “terrorismo” islâmico não nasceu agora.

Mas antes da balela mortífera da Primavera Árabe,  e da Guerra do Iraque, que levou à destruição do país, com a mentirosa desculpa da posse, por Saddam Hussein, de armas de destruição em massa que nunca foram encontradas – tão falsa quanto o pretexto  do envolvimento de Bagdá no ataque às Torres Gêmeas, executado por cidadãos sauditas, e não líbios, sírios ou iraquianos – não havia bandos armados à solta, sequestrando, matando e explodindo bombas nesses 3 países.

Hoje, como resultado da desastrada e criminosa intervenção ocidental, o terror  do Estado Islâmico, o ISIS, controla boa parte dos territórios e da sofrida população síria, iraquiana e líbia, e, a partir deles, está unindo suas conquistas em torno da construção de uma nação maior, mais poderosa, e extremamente mais radical do ponto de vista da violência e do fundamentalismo, do que  qualquer um desses países jamais o foi no passado.

O ataque terrorista à redação e instalações do semanário francês Charlie Hebdo, e do Mercado Kosher, em Vincennes, Paris, foram crimes brutais e estúpidos.

Mas não menos brutais, e estúpidos, do que os atentados cometidos, todos os dias, contra civis  inocentes, entre muitos outros lugares, como a Síria, o Iraque, a Líbia, o Afeganistão.

Quem quiser encontrar as sementes do caos que também atingiram, em forma de balas, os corpos dos mortos do Charlie Hebdo poderá procurá-las no racismo  de um continente que acostumou-se a pensar que é o centro do mundo, e que discrimina, persegue e despreza, historicamente, o estrangeiro, seja ele árabe, africano ou latino-americano; e no fundamentalismo branco, cristão e rançoso da direita e da extrema direita norte-americanas, cujos membros acreditam piamente que o Deus vingador da Bíblia deu à “América” do Norte o “Destino Manifesto” de dirigir o mundo.

Em nome dessa ilusão, contaminada pela vaidade e a loucura, países que se opuserem a isso, e milhões de seres humanos, devem ser destruídos, mesmo que não haja nada para colocar em seu lugar, a não ser mais caos e mais violência, em uma  espiral de destruição e de morte, que ameaça a sobrevivência da própria espécie e explode em ódio, estupidez e  sangue, como agora, em Paris, neste começo de ano.

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